quinta-feira, dezembro 14, 2006

De: Álvaro de Campos / À Malu de bicicleta

Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

sexta-feira, dezembro 01, 2006

"Caramba, desculpe!"

- Então você é notívaga...
- Noti o quê?
- Notívaga.
- É, acho que sou.

Sem conseguir dormir ela lembrou de quando ouviu a palavra pela primeira vez. Foi a primeira que ele a ensinou. Gostava de aprender... Houve um tempo que passou a se encantar com o aprendizado acerca da reprodução das briófitas e pteridófitas. Bons tempos! Era só estar na companhia da pessoa certa e se deparar com alguns musgos ou samambaias para desfrutar de uma verdadeira aula sobre os vegetais sem flores, seus ciclos divididos em fases assexuada e sexuada, a afinidade com ambientes úmidos... Um mundo a parte no qual ela mergulhava, quase sempre de cabeça. Ela tinha o costume de se apegar às pessoas que lhe ensinassem coisas. Talvez um pouco por isso tenha se encantado com o professor de piano. Adolescente, ficava sem jeito quando ele pegava em seus dedinhos para colocá-los na posição certa sobre o instrumento. Achava graça quando o professor dava um tapa carinhoso em seu dedo mindinho que sempre apontava para o alto, enquanto os demais tateavam as brancas e as pretas. O mestre era um sujeito que fazia o estilo David, de Michelangelo. Exceto pela parte desavantajada, que ela sequer pensava em conferir, e por ser um respeitoso pai de família que não se prestaria ao ridículo de ficar posando nu por aí. Enfim, era fato. Pessoas ‘didáticas’ a conquistavam. E ela sabia reconhecer de cara o tipo: autoconfiança aparente, discrição, frases de efeito, palavras difíceis e aquele ar inconfundível de quem diz “já passei por esse caminho”, “já tenho a receita” ou ainda “já tenho o bolo pronto”. Não que se sentisse atraída por tipos completamente arrogantes. Isso ela abominava. Tinha que haver uma delicadeza. E mais que isso, uma generosidade. Não fosse assim, a conversa pareceria insuportável logo nos primeiros minutos. Tampouco poderia ser alguém prolixo, tinha que ser o tipo econômico, porém certeiro. Um tipo que ela própria sempre desejou ser, mas poucas e raras vezes conseguiu. Na verdade, ela até possuía a capacidade de atrair a atenção dos seus interlocutores, mas não conseguia mantê-la cativa. Dois defeitos a levavam ao fracasso em suas muitas tentativas: 1. a ansiedade flagrante de encantar o ouvinte, 2. o excesso. O segundo, claro, decorrente do primeiro. Ela sabia que a maioria dos interlocutores não se sentiam confortáveis diante de olhos latejantes, de gestos exagerados, de palavras atropeladas, de assuntos sobrepostos... Além de ser difícil para alguns acompanhar esse ritmo, acabava virando ruído. Na comunicação é assim: muita informação sobreposta e mal apresentada pode, e frequentemente vira ruído. Isso é característico de pessoas que sofrem da “síndrome do mau receptor”. Claro que em um diálogo somos sempre emissores-receptores. Mas há pessoas, e ela era mestre em cometer este erro, que se esquecem que a comunicação é composta por esse binômio (esta palavra está se repetindo em meus textos...). Quando começava a falar, pronto! Às vezes desandava em divagações intermináveis, dava voltas e mais voltas, criava neologismos, invertia ditados populares, passava a quinta e ia embora. Até que parava por uns dois minutos e percebia um enorme vácuo criado pelo silêncio repentino. “Caramba, desculpe! Acho que falei demais!”.


quarta-feira, novembro 29, 2006

Mais um sábado...

Parece brincadeira que ao sair para pedalar algo tão sugestivo tenha acontecido. Vou contar do começo. O sol parecia baixar e a temperatura idem. O relógio da praia já não marcava os 39, 40 graus do meio dia. Um pouco menos, embora o calor ainda estivesse de rachar! Dezoito horas e soa o sino da igreja. Pausa: moro em um enorme prédio cercado por várias casas e apenas outros edifícios mais distantes. Sempre imaginei que, um dia, infelizmente, uma construtora iria conseguir comprar essas casas e um monte de outros edifícios iriam surgir, como se brotando da terra. Minha mãe conta que quando visitou o prédio pela primeira vez, há quase 24 anos, dava para ver o Cristo. Então, para ela pareceu um sinal que de um lado estivesse o Redentor – ainda que lá longe, depois da Guanabara – e do outro a Virgem, ou uma enorme imagem dela que até hoje está paradinha no alto de uma torre, lá em cima do morro. Ah, sim! Há um morro! Minha salvação, pois este duvido que consigam remover.

Voltando... Por que mesmo fiz essa enorme pausa?! Lembrei! É que, mesmo vivendo na cidade, espaço urbano, tenho o prazer de escutar diária e pontualmente dois sons que me remetem para o fugere urbem do parnasianismo: o blém blém do sino e o co-ró-có-có do galo. O primeiro chamando os fiéis para a missa, geralmente às 18 horas. O segundo despertando os trabalhadores para o batente por volta das cinco da matina . E há quem atenda a um ou ao outro. No sábado que saí para passear de bicicleta, juro que ouvi o tal chamado . Mas cada um interpreta do jeito que sabe. E lá fui eu para minha divina pedalada em pleno horário de verão, com uma hora a mais de dia para colocar alguns pensamentos em ordem. Devo admitir que isso nunca funciona. Volto e eles estão ainda mais embaralhados. Mas nada como o vento no rosto, um som no ouvido, fim de tarde... “I’m walking on sunshine iê iê...”

Quando eu estava prestes a subir a Estrada Fróes na direção de São Francisco, a bicicleta deu claros sinais de que algo não ia bem. Parecia uma ironia metafórica que ao pedalar eu não conseguisse sair do lugar e, claro, tombasse para o lado. Duas, três, cinco vezes tentei empurrar o pedal, mas ele cumpria a volta inteira sem transmitir a força. O trinômio pé-pedal-corrente não estava dando resultado. Tentei usar meus conhecimentos e dar um jeito, mas só o que consegui foi sujar minhas mãos de graxa. Enquanto isso, o sol ia se escondendo no horizonte, afundando até chegar no Japão. Ao menos era o que eu imaginava quando pequena. Bem pequena, garanto! Com mãos e rosto pretos de graxa, resolvi parar por dez segundos e admirar um pedacinho do show, como quem entra no teatro, espia o ato final da peça e já guarda a impressão de ter visto um grande espetáculo.

A bicicleta?! Nada... Mas depois vou tentar novamente consertá-la. Acho que há épocas que são assim mesmo. Há tempo de pedalar e tempo de parar e apenas contemplar. Claro que uma mente aquariana não se conforma muito em ser apenas espectadora, mas vi que às vezes não há muito o que fazer quando o trinômio pé-pedal-corrente resolve não funcionar. Ainda bem que existe o pôr-do-sol...

domingo, novembro 19, 2006

Nas palavras de outros...

Outro Lugar

(Milton Nascimento)

Cê sabe que as canções são todas feitas pra você
E vivo porque acredito nesse nosso doido amor
Não vê que tá errado, tá errado me querer quando convém
E se eu não estou enganado acho que você me ama também

O dia amanheceu chovendo e a saudade me contém
O céu já tá estrelado e tá cansado de zelar pelo meu bem
Vem logo que esse trem já tá na hora, tá na hora de partir
E eu já to molhado, to molhado de esperar você aqui

Amor eu gosto tanto, eu amo, amo tanto o seu olhar
Andei por esse mundo louco, doido, solto com sede de amar
Igual a um beija-flor, que beija-flor,
De flor em flor eu quis beijar
Por isso não demora que a história passa e pode me levar

E eu não quero ir, não posso ir pra lado algum
Enquanto não voltar
Não quero que isso aqui dentro de mim
Vá embora e tome outro lugar
Talvez a vida mude e nossa estrada pode se cruzar
Amor, meu grande amor, estou sentindo
Que está chegando a hora de dormir

sábado, outubro 28, 2006

"Outra vez" (Malu de bicicleta)

Ela saiu para pedalar. Encontrou um final de tarde com o sol se espreguiçando por toda cidade, se esparramando pelo mar. Pedalou acompanhada pela música e por alguns pensamentos.

No meio do caminho, viu mães passeando com seus bebês, o vovô com o cachorro na coleira, senhores batendo ponto no bar, conversa entre amigos e um tira gosto fritado na hora, casais abraçados, outros amassados.

Foi passando incansável, recortada do cenário, quase imperceptível.

Força nas pernas, normalmente tão pouco exigidas. Respira, admira, transpira. Curvas, curvas, curvas, curvas. Desce, venta, acelera, acelera, acelera...

O sol já vem beijar a terra e encosta nas pedras fazendo-as brilhar... A garça, branca e arrepiada, se equilibra sobre duas estacas fincadas no meio do mar.

O vento bate forte neste fim de outubro.

Ela parou. À sua frente, o sol já vem deitando...

Em uma das pedras, ela leu:

“Cristina,

Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter

Te amo

Alex”
.../... /...

Demorou para lembrar da melodia, mas ainda que sem ela as palavras pareceram familiares: lembrança, saudade, amo... Algumas partes da mensagem, incluindo a data, já haviam sido apagadas, tamanho o desgaste causado pelas ondas invejosas.

Ela ficou ali alguns minutos com o sol batendo em seu rosto. Leu e releu meia dúzia de vezes aquelas palavras até que a melodia acabou se intrometendo... Deu as costas para o cenário e voltou assobiando a canção. Alguém chamado “Alex”, mesmo sem saber, tinha conquistado uma companhia para sua lembrança e saudade.


Cenário: 16 horas, praça à beira mar em frente à Igreja, Rua Quintino Bocaiúva, São Francisco, Niterói. Na altura do pôr do sol, onde ele se esparrama sobre o mar e estica um tapete dourado.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Coletânea

De você, beijo.
De você, bons conselhos e críticas.
De você, jazz e sertanejo.
Uma coletânea de noites regadas a vinho
De domingos chuvosos, de carinho.
De você, quero divagação e sensatez.
Muitas horas sobre os males do mundo
E sobre assuntos dos mais banais.
De você, sobriedade e embriaguez.
De você, uma coletânea de trocas.
Minha certeza, sua dúvida
Minha vontade, sua indecisão.
Minhas janelas e portas (abertas)
Meu diálogo, sua atenção
Minhas supresas, meus ideais.
Seus sorrisos reunidos em coletânea.
De você, quero possibilidades.
De você, quero Bethânia



E um pouco mais...

terça-feira, outubro 24, 2006

Diálogo...

Diálogo entre dois


Faz o seguinte: não vamos mais falar de mim!
Não vamos mais falar dos meus propósitos
Nem da minha espontaneidade.
O tema não mais será minha língua solta e inconseqüente.
Não vamos falar das minhas muitas viagens
Nem das poucas aterrissagens
Não vamos falar nada sobre mim,
Não vou ser tampouco coadjuvante.
Vamos sair dessa monotonia de um tema só.
Vamos adiante...
Não falemos dos meus afazeres sem importância
De minha carência, dissonância ou decepção.

Não quero - e o proíbo - de tratar da minha estática vida amorosa
Ou de minha libido nada sulfurosa.
Não toque nos meus fins de semana,
Não mexa nas minhas noites de insônia
E não teorize sobre minha sensatez duvidosa.

Faz o seguinte: vamos falar mais de você!
Da sua voz robotizada
Do seu cigarro fedorento
Das suas baforadas altivas
À frente do sorriso debochado
E do ar de intelectual.

Da sua roupa engomadinha, do sapato engraxado,
Do seu estilo ‘roupa de missa’.
Vamos falar da sua vida de nômade,
Da sua próxima parada,
Dos seus flagrantes fios brancos
Ou da sua namorada...
Vamos falar dos seus 20 e poucos anos
Dos seus erros e danos
Da sua família desmembrada.
Vamos falar dos seus planos, da sua carreira promissora,
Do seu dia-a-dia entre papel, pedra e tesoura.
Do seu ofício de guardar a janela alheia
Vamos falar do seu jeito vagaroso, sempre com os dois pés no freio...
Vamos - e isso é provocação da boa! - falar do seu um metro e meio.
E quando, por acaso, o assunto acabar,
A saliva secar ou a curiosidade se extinguir,
Vamos um para cada lado.
Ou sentados em um banco de praça,
Vendo qualquer cena cotidiana, banal e sem graça,
Vamos apenas sentir.





quarta-feira, outubro 18, 2006

Três!

Não é hoje que essa pedra vai sair daqui...

Não, não é hoje e nem amanhã. Eu sei. Pode demorar anos até que a erosão seja concluída e quando isso acontecer, talvez (eu disse: talvez), eu já tenha me esquecido porque ela foi parar cá em cima.

Acho pouco provável, mas é possível que um dia esta pedra tão familiar e tão parte de mim já não faça mais sentido sob meus ombros, pesando com força e entortando minha coluna, antes tão ereta.

Pode ser (eu disse: pode ser...) que um dia não faça mais sentido carregar este fardo, esta herança judaico-cristã, esse carma ou seja lá o nome que queiram lhe atribuir. Para mim pouco importa!

Pode ser que um dia (eu disse: um dia...) eu canse de curvar meu pescoço e outorgue minha liberdade. Então, vou perceber que nunca houve correntes, que nunca houve tranca, nunca houve sequer porta! Eram apenas janelas, todas abertas, todas exibidas com vasos de flores campestres e cortinas rendadas.

E direi: "Que tonta eu fui! São apenas janelas!"

Vou me debruçar sobre uma delas, sondar a paisagem e contar até 3:

- Um, dois...

quinta-feira, outubro 12, 2006

Toc, toc, toc, toc...Soluço!




Museu Rodin - Paris
"Há sempre algo de ausente que me atormenta" (Camille Claudel)






Quem pode obrigar uma idéia a ir para o papel, quando ela insiste em permanecer martelando na cabeça?!

Você explica para ela que o lugar dela é sobre o papel e nada! Ela é teimosa! E passa semana e chega semana e ela permanece irredutível. Você coloca o papel em branco na frente para ver se consegue seduzí-la. Ela faz pouco caso, vira a cara e segue seu cotidiano massacrante, desgastante, pesado. Você sacode a folha branca, como a mãe que tenta atrair a atenção do bebê para a chave enquanto retira a faca de seu alcance. Inútil!

Cansado, você a ignora, finge que ela não está ali, que não o encomoda, que não altera sua rotina, que não muda seu humor, que não é inconveniente...
E ela desaparece como soluço. Pausa: como parar um soluço?! este tema merece algumas palavras...

Você se sente aliviado, bem-humorado, tranqüilo, bem disposto, confortável, encaixado direitinho no mundo. Até que...
Soluço!
Receitas para acabar com soluço: (serviço de utilidade pública)

1. Beber água sem respirar
2. Papel na testa (contra indicado para pessoas que estiverem em público)
3. Susto (contra indicado para pessoas com pressão alta)
4. Beijo (não passa, mas é divertido!)
5. Beber água de cabeça para baixo (contra indicado para pessoas submetidas à gravidade)
6. Forçar o soluço (não ajuda a passar, mas você conseguirá chamar atenção...)
7. Prender a respiração.
8. Outros
9. Levantar os braços (ou esse é para quem engasga?!)
10. Se jogar - de cabeça - do último andar de qualquer edifício com mais de 5 andares (contra indicado para pessoas com amor à vida)

E quanto à idéia: conviva com ela aguardando para saber quem sobreviverá mais. Você ou ela?! Ou se joga sem pára-quedas sobre ela. Deixe-a acreditar que está ganhando, enquanto é desgastada aos poucos. Até que um dia você vai sentir falta de alguma coisa, vai abrir o armário, vai vasculhar de baixo da cama, vai verificar na caixa do correio e vai ficar um bom tempo com a sensação de que perdeu algo pelo caminho...

terça-feira, outubro 03, 2006

Série "Correspondências"

Abaixo, o primeiro post da Série Correspondências:
08. 02. 02
"Estou em casa, mais precisamente no quarto dos meus pais. Tenho um cartão telefônico na minha frente. Estou deitado. Na bela paisagem do cartão vejo nuvens, vejo árvores, vejo água, vejo casa. Vejo muita coisa. Só não vejo gente. Faltam pessoas para compor a paisagem, sinto que falta. É praticamente um Romeu e Julieta sem goiabada. Simplesmente falta algo essencial.
Converso com você. Gosto disso. Gosto de poder penetrar nos seus olhos e enxergar a sua mente. Embora você não saiba, seus olhos são claros, diria que até cristalinos. E isso me preocupa certas vezes. Isso me preocupa, pois consigo ver neles uma ambição de não enfrentar incertezas, incertezas que te incomodam. Na vida, o que a torna tão espetacular é o fato de um Deus estar jogando dados a todo instante. Somos regidos por incertezas e probabilidades, e isto é ótimo. (Sem essa incerteza, tenho medo de imaginar como seríamos). Nós somos microcosmos, e como tal, possuimos uma organização complexa. O que acontece conosco é o mesmo que acontece com os ecossistemas. Devemos interagir de forma construtiva com outros microcosmos, a fim de estabelecer um macrocosmo mais equilibrado. Ninguém é autosuficiente. Nós só estamos aqui pois sabemos nos relacionar de forma vantajosa com (muitos) organismos. Você já parou para imaginar quantas variáveis entram numa equação para que o resultado seja igual a "vida"? São inumeráveis, infinitas.
Digo isso para mostrar que nada nem ninguém é completo sem estar relacionado. Fico imaginando se mantendo o atual estado poderemos ajudar um ao outro. Não desejo ser apenas uma válvula de escape nem um passatempo. Isso não me torna melhor. Devemos pensar e modificar essa forma de tratamento. Todos estamos interligados. Seres vivos + "não vivos", tudo está ligado. Formamos uma teia e visamos o equilíbrio - a mãe Gaia agradece."

sábado, setembro 30, 2006

O revisor 2

Termina o expediente. Ele recolhe suas coisas: pasta, guarda-chuva e casaco. Se espreguiça e ameaça:

- Ahh, eu vou me vingar daquela rede! Eu sai de manhã cedinho e ela, danada, ficou me olhando com ar de deboche, debaixo daquele jamelão...

sexta-feira, setembro 29, 2006

"Um beijo meu"

“Entendo sua preocupação com essa situação e por isso queria te dizer, em caixa alta:

NÃO SE PREOCUPE.

Eu não estou chateado com você, nem poderia. Entendo bem que tudo isso tenha te causado certa angústia e poderia apostar que parte dela vem do fato de que você gosta (um pouquinho) de mim.

Da minha parte, queria apenas que você não me tratasse como um estranho nos momentos em que nos encontramos. Quero sempre sentir que você pode estar próxima ainda que, nesse momento, não possamos estar do jeito que eu gostaria que estivéssemos e que, espero, seja também o seu desejo, ainda que contido.

A não ser que você queira me dizer coisas a esse respeito, e prefira que seja pessoalmente, não vejo porque sentarmos pra conversar como você sugeriu. Quero sim, conversar com você como conversamos naquela delicatessem, sobre nossas vidas. Foi, sem dúvida, uma conversa maravilhosa!

Um beijo meu”.


Porque as cartas perdem espaço para os e-mails?! Fosse tudo aquilo escrito à mão soaria ainda mais romântico e ainda mais gostoso de ser lido e relido. O anonimato do autor só não superava em beleza o costume dos amantes de deixarem suas iniciais. Mas a ausência de um nome ao final dava um toque especial, como se reforçasse a idéia de que aquelas palavras só poderiam ter uma única origem.

Mais uma vez: porque as cartas perdem espaço para os e-mails?! Fosse enviada pelo correio selada, carimbada e registrada, chegaria junto com as contas e outras correspondências. Causaria um espanto no primeiro segundo e logo se destacaria, não por algo à mais, mas pela ausência. Não, não seria nunca uma ausência que atormenta. Poderia vir sem o remetente, deixando completo o falso ar de suspense. Falso porque ela, e apenas ela, saberia quem era autor das palavras e do beijo final.

“Um beijo meu”...

A inversão do pronome possessivo, que sempre vem à frente, demarcando a posse (minha caneta, minha vida, meu amor, minha namorada...) encerrava o e-mail com um charme todo especial.

Se ele escrevesse apenas “Um beijo”, seria um beijo solto, que poderia se perder pelo caminho e nem chegar até o destino. Mas porque “Um”, apenas 1, ou “Um” beijo qualquer? Logo ela se deu conta de que a indefinição daquele artigo representava a incerteza do que o futuro reservava para os dois.

Poderia ser “Um” entre vários ou poderia ser “Um” à espera daquele que fosse “O beijo”. Como ele escrevera em caixa alta, ela tentou não se preocupar e, embora ainda lhe restasse algumas centenas de palavras para serem ditas, ela concordou que seria melhor não correr o risco de pecar pelo excesso. Calou-se. Calou-se, buscando não alimentar em si expectativas de novamente voltar a falar...
Mas antes se permitiu uma último pensamento, daqueles que quase saem em voz alta de tão espontâneos.

Lembrou-se que no rótulo destacado de um vinho chileno como lembrança de um encontro inusitado ele escrevera: "adorável estranha". Os dois assinaram e dataram aquele vestígio da história, que ela logo correu para buscar dentro da bolsa. Em seguida, releu: "queria apenas que você não me tratasse como um estranho nos momentos em que nos encontramos".

Com o rótulo em uma das mãos, ela percebeu que não deixaria de ser adorável, tampouco estranha.

Deixou aquilo tudo de lado e foi andar de bicicleta...

quarta-feira, setembro 27, 2006

Mais um trecho (fora) do cotidiano

Ela esperava que ele a acompanhasse. Ele esperava que ela pedisse sua companhia. Ela esperava que ele falasse. Ele desejou suprimir as palavras. Ela disse que ia para esquerda. Ele se manteve em seu caminho. Eles foram embora, cada qual com seus pensamentos, porém sozinhos.
Antes, trocaram dois beijos cínicos, que não seguiram seus destinos, mas permaneceram retraídos um em cada lado da face.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Frases (fora) do cotidiano

Viajar é se perder...:

"Repleta de uma malvada sensatez, perdeu-se de mim antes que eu me perdesse dela."


***
O anti-super-homem:


Ele chega do almoço, senta na cadeira, se inclina jogando o corpo para trás e coloca o fone nos ouvidos. Antes disso, tranqüiliza: “eu tiro o óculos e fico inofensivo”.

O revisor, que acumula mais de 20 anos entre provas e originais, sofre da síndrome do anti-super-homem, mas guarda algumas características em comum com o cidadão de Metrópolis.

Ambos sobrevoam um ambiente jornalístico, embora o inofensivo ocupe um espaço menor que a gigante redação do “Planeta Diário”. Seu planeta, ao contrário, é mensal e bem menos imediatista, possibilitando que, após o almoço, o revisor feche os olhos por alguns minutos e possa imergir na sonoridade que só seus ouvidos tem o prazer de desfrutar.

De um lado, um se prepara para salvar o mundo, se despe de óculos e gravata. De outro lado, adaptado e confortável com algumas facilidades do avanço tecnológico, a luta do revisor, não menos nobre, é contra as terríveis palavras sem acento, os malignos erros ortográficos, os perigosos vilões da má concordância e as impiedosas incoerências textuais.

As armas: capa e óculos. As fraquezas: criptonita e hipermetropia.

domingo, setembro 17, 2006

Bombas de sódio e potássio...

De leigo para leigos...

A bomba de sódio e potássio tem importante papel no equilíbrio hídrico celular. Diante da grande porcentagem de água existente em seu interior, a célula tem que dispor de sistemas que mantenham em equilíbrio essa quantidade, tendo, como princípio elementar de funcionamento, as relações das concentrações de íons e proteínas entre os meios extra e intracelular. As concentrações são mantidas graças às trocas iônicas e protéicas estabelecidas entre os meios internos e externos à célula, de tal modo que se mantenham as concentrações ideais de cada íon e proteína em cada meio. A bomba de sódio e potássio é uma das estruturas pertencentes ao sistema de regulagem hidroeletrolítica da célula, sendo responsável, como o próprio nome diz, pela manutenção das concentrações iônicas do sódio e do potássio. A bomba localiza-se na membrana plasmática (que envolve a célula) e depende de ATP (“energia”) para o transporte desses íons (Na+/ K+), principalmente do potássio, cujo trajeto vai contra um gradiente osmótico (o potássio é transferido do meio extracelular, onde é encontrado em pouca quantidade, para o interior da célula, que possui cerca de 30x mais potássio que o meio externo). Assim, sódio e potássio cumprem seus respectivos papéis contribuindo para o equilíbrio hídrico celular.

***
Ela precisou buscar o auxílio da internet para compreender melhor aquela analogia que, mesmo incompreensível, lhe pareceu bastante interessante...

Ela se fez de réu confesso:

- Desculpe, acho que falo demais.

Ele encontrou a deixa para sua metáfora:

- Sabe o que é bomba de sódio e potássio?

Ela soube. Um dia, quando se preparava para prestar vestibular... Mas já não lembrava.

Após uma rápida explicação, que não foi bastante, ele disse que os dois eram como o sódio e o potássio, cada um necessitando de algo diferente que o outro. Necessidades diferentes, mas complementares. Melhor que necessidades, eram habilidades.

E, habilmente, ele a ouvia com atenção e carinho. Tanto mais ela tivesse para falar mais ele se ofereceria para ouvir. Mas não era daqueles ouvintes passivos... Um sorriso ou um olhar eram complementares e dialogavam durante aquele longo (talvez interminável) monólogo.


Ela por sua vez cumpria seu papel. Falar, falar e falar. E falar mais um pouco. Alterada esta composição, feita qualquer interferência nas concentrações de audição e “falação” estaria comprometido o equilíbrio...

domingo, setembro 03, 2006

Diálogo...

Cenário: ponte Rio-Niterói
Sentido: Niterói
veículo: ônibus

- Eu me sinto como um carro que pode ir a 300 km/h e só anda a 80.
- Ué, isso não é ruim. A velocidade máxima da ponte é 80 km/h.
- Tá, se você se contenta com 13 km...

Diário de viagem (trechos)

(Algum dia de julho de 2006...)

É incrível como viajar sozinha me fez ainda mais comunicativa, mas também me ajudou a exercer meu lado pensativo. Cultivei uma introspecção absurda! Sou daquelas pessoas (malucas?!) que falam sozinhas. E vi esse sintoma ser triplicado. Além disso, confesso: me tornei mais voyeur do que jamais fui. Sim, porque já exercia uma certa prática, um certo voyeurismo...

Gosto de observar pessoas.

Às vezes, quando estou dirigindo, paro no sinal e não resisto a um olhar furtivo em direção ao carro vizinho. Aliás, malditos insulfilmes!

O mais interessante de se observar as pessoas é imaginar quem são, perceber como estão vivendo aquele dia, o que estão pensando, para onde dirigem... É relaxante se perder no mundo alheio. Uma distração até que um verde dê um sinal de esperança e eu possa seguir.

Como dizia, durante a viagem, estava sentada em um bar de Montmartre e ao lado da minha mesa um casal. Os gestos dela e dele me pareceram muito familiares. A mulher jogava o corpo para trás, se inclinando sobre a cadeira a cada vez que ria de algo dito pelo seu interlocutor. Não falo uma linha em francês, mas posso jurar que o rapaz era bastante engraçado. Ou o jeito como a jovem se jogava para trás sorrindo e arrumava o cabelo desarrumando-o apenas fazia parte do diálogo entre os corpos. Sabiam que os corpos falam?! Já ouvi algo assim e penso que procede...

Ali, naquela rua da Cidade Luz, uma cidade que transpira romantismo – ou pode ter sido uma impressão mais subjetiva, dado minha, digamos, inspiração – enquanto eu comia meu hambúrguer com batata frita (delícia!) visualizei naquela cena a reprodução de outras. Algumas que eu mesma protagonizei.

Vi a euforia dos dois diminuir aos poucos, como se alguém houvesse pedido à banda que mudasse o ritmo e ao iluminador que abaixasse a luz... Claro que no meio da rua, naquelas mesinhas ultra charmosas, não havia música nem iluminação especial. Mas era como se houvesse.

Ele pega na mão dela e nesse momento os dois já têm certeza de que estão em sintonia. É tudo uma questão de tempo... Ela ainda ri de algo que ele fala (em francês, logo não entendi nada!), mas agora sem jogar o corpo para trás. Apenas a cabeça, como se tentasse fingir que deseja escapar do cerco que ele cria em volta dela. No entanto, ele já percebeu que ela está dentro do cerco e não quer sair. Enfim, o resto a gente já sabe como funciona. Resolvi deixar os dois a sós, pois este é o momento em que o plano se fecha, restando apenas o casal em cena. Ficaria apertado demais para mim.

Espelho

Tio Luiz e vovó:


- Olha mãe, eu chego em casa tão cansado, tão cansado, que eu não olho para o espelho. O espelho que olha para mim...

terça-feira, agosto 29, 2006

Borrão (feito para ler sem respirar)


















Excesso
Ex-cessar
Não cesso
Energia em excesso
Pensar
Conteúdo bruto
Massa amorfa
Que pede para ser modelada
Que explode na tela
Qual puta dor
Ódio catarse


E é ela
Só ela entende e absorve
O que o mundo ignora
Porque é amorfo
Porque não é rosa
Porque não tem cor
Excesso de energia
Excesso de potencial
Excesso de pretensão
Tensão
Explode na tela
A tinta sem forma
Ruído e comunicação
É sim informação
Não está armada
Pronta para ser deglutida
É amorfação
Informação amorfa
Espera o apreciar ruminante
Daquele que sempre
Pode se dar o direito de perder tempo
Ganhando amorfação
Informação amorfa
Energia excesso tela borrão.
(MLCM)

quinta-feira, agosto 17, 2006

Por Anna:

_PÉSSIMA ATRIZ. Fora do elenco. Fo-ra. E não ouse mais colocar os pés no meu palco. Ouviu? Não OU-SE.

Vira-se para o ajudante, com muita classe:

_ Artur, acompanhe esta... esta menina até a saída.E quando ela já está quase saindo:

_Ei, menina, pensa em jornalismo. De repente tem mais a ver com você.

quarta-feira, agosto 09, 2006

terça-feira, agosto 08, 2006

Cenas do cotidiano...

(Imagem: Lisboa - Praça do Comércio)

- Filhinha, vovó foi para o hospital e depois vai para casa de papai do céu.
- É, eu vi. Foi lá no jardim. Ela caiu.
- Você entendeu, meu anjo? Vovó foi morar com papai do céu...
- Mas ela vai só com aquela roupa?
- É meu anjo... Lá em cima Ele vai dar roupa para vovó.
- Papai do céu dá roupa nova?

O pai abaixa a cabeça, rascunha um sorriso...

- É meu amor, papai do céu dá tudo que você pedir.



quinta-feira, agosto 03, 2006

Transversais 2

O beijo - Museé Rodin (Paris)
Clique na imagem para ampliá-la
Harmonia
(Anderson Sato)

No princípio tudo era novo
Incerto
Inseguro

As mãos e bocas vagavam
Descompassadamente
Seguiam

Permitiam-se a quase tudo
Depois a tudo
A mais que tudo

Das palavras cada vez mais desconexas
O descompasso se tornou sincrônico
As respirações ofegantes se uniram

O suor que escorria na pele
Pingou
Pingou
E pingou

No lençol branco só amassos
E suor

Ambos entenderam que dos erros de cada um
Da falta de tempo de cada um
Do atraso de cada um
A antecipação deles
Acabou por torná-los assim...
Harmônicos

E o galo cantou...
O sol raiou...
Amanheceu
Adormeceram.

Transversais

On me dit que le destin se moque bien de nous
Qu'il ne nous donne rien et qu'il nous promet tout
Parait qu'le bonheur est à portée de main,
Alors on tend la main et on se retrouve fou
Pourtant quelqu'un m'a dit /Que tu m'aimais encore,
C'est quelqu'un qui m'a dit que tu m'aimais encore.
Serais ce possible alors ?***


Poderiam ser como duas retas paralelas
E, reversos, nunca se cruzariam.
Ou, como na matemática, ansiariam até um tempo no infinito.

Poderiam ser como as perpendiculares,
Mas os corpos pesariam, desejando estreitar os 90º de distância.

Poderiam formar ângulos variados,
mas ainda sofreriam uma dolorosa ânsia,
esperando um encontro pouco obtuso, menos oblíquo.

Fosse assim, seguiriam como as retas
cada um em seu inabalável percurso.
Buscariam cada um seus sentidos e direções próprias.
Continuariam fiéis às fronteiras que, geometricamente,
separam suas formas.

Um não saberia da existência do outro.
E por isso, não conheceriam a vontade de rever, reencontrar.
Sequer esperariam pela remota possibilidade de re-sentir.

Suas curvas não provariam qualquer alteração,
Não formariam as elípticas e inevitáveis deformações do contato.

Seus conjuntos continuariam vazios
Sem elemento que os preenchesse.

Mas, empurrados ao confronto,
testaram a Física, reduziram espaços.
Enfrentaram resistências que limitavam a soma,
Multiplicaram as possibilidades horizontais.

Quando se imaginavam vencidos,
Comparsas, traçaram a angulação perfeita,
E os dois se descobriram. Ainda retas, mas transversais.
(MLCM)



***Falaram-me que o destino se diverte conosco/Que não nos dá nada e que nos promete tudo/Parece que a felicidade está no alcance de nossas mãos,/Então a gente estende a mão e se descobre louco/Portanto alguém fala para mim.../Que você ainda me ama,/Foi alguém que me disse que você ainda me ama/Será isto possível então?
(Carla Bruni - Quelqu'un m'a dit)

segunda-feira, julho 31, 2006

Entre a cruz e a espada - O imigrante

Lisboa - Portugal
"Ao infante D. Henrique e aos portugueses que descobriram os caminhos do mar"


Um brasileiro de Tocantins/Palmas buscou melhorar de vida em solo português. A esposa enviou os euros para passagem depois de trabalhar por uns seis meses como babá. O imigrante não teria coragem para ser o primeiro a se aventurar. Além disso, parece que é mais fácil para as mulheres driblar o pessoal da imigração.

Hoje, lá se vão quatro anos... Os dois enteados do imigrante (um deles recém-chegado) moram com ele, a mulher e a filha de 16 anos em um apartamento próximo à Praça das Nações, Lisboa.

Quem divide o espaço divide também as despesas. Todos trabalham, até a filha do imigrante, futura médica e atual garçonete no restaurante onde a mãe é chefe de cozinha. Aprender um pouco da culinária portuguesa deu resultado!

O imigrante que começou lavando carros hoje se orgulha por não colocar "um dedo na água". Foi promovido ao posto de recepcionista. Em sua matématica, quem chega para trabalhar em Portugal, como ele e outros milhares de brasileiros têm feito, pode começar ganhando 600 euros, economizar 400 e viver "bem" com os 200 restantes.

- Mas tem que querer trabalhar! - reforça o imigrante, que antes de redescobrir "os caminhos do mar" e se aventurar em Portugal ganhava inconstantes R$ 800 em "bicos" ocasionais.

Quando encontrei o imigrante na Praça das Nações, em Lisboa, ele havia acabado de buscar o mais novo dos enteados no aeroporto. O jovem de 20 anos curtia as primeiras horas respirando mais tranqüilamente o ar europeu. Com a carta-convite da mãe, chegou até Lisboa, mas não antes de ser interrogado, questionado e pressionado por cerca de duas horas. A conexão em Paris foi árdua!

Não bastasse ter que encontrar o portão de embarque dentro do Charles de Gaule (um caranguejo enorme!), ainda teve que justificar o motivo de sua viagem para um indivíduo que só falava francês.

O jovem imigrante sequer sabia arriscar um "Je ne parle pas français". Seus gestos tampouco indicavam o que ele pretendia, pois o francês se irritava ainda mais quando ele tentava mostrar com as mãos que não entendia nada do que estava sendo dito. Enfim, eis que chega "ela", linda, salvadora... A tradutora!

-Fui levado para delegacia.

- Não é delegacia, é a alfândega.

É o irmão mais velho quem corrige o jovem imigrante. Com dois anos a mais, gel no cabelo e corpo malhado o sotaque já não parece tanto com o do irmão mais novo, que puxa os "RR" e abusa das gírias oriundas da região do grande Araguaia.

E o imigrante, padrasto dos dois irmãos, olha o rio Tejo e deixa escapulir uma pontinha de saudade. Lembra do velho Araguaia...

Quatro anos depois de pisar em Portugal, ele planeja a volta para casa. Já comprou duas garrafas de wisky enormes, mas só para enfeitar o bar que vai construir em casa. Um antigo sonho de consumo.

Volta para Tocantins alguns euros mais rico, deixando a ex-metrópole para trás. Enviar o dinheiro para a terra natal nem lhe custa muito.

Os enteados ficam. Ainda há muito que explorar nesta terra de D. Henrique. Vindos de além-mar, eles colonizam os ex-colonizadores, esticam a bandeira verde e amarela na janela, conquistam postos de trabalho e só perdem para os angolanos.

- Esses caras ganham muito dinheiro por aqui - observa o imigrante olhando um homem alto, forte e negro que faz seu cooper à beira do Tejo. O imigrante sugere que os negros têm mais resistência para o trabalho pesado. Como se nascessem para isso...

E deu no jornal:

- São 250 mil brasileiros trabalhando em Portugal.

quinta-feira, junho 29, 2006

quinta-feira, junho 22, 2006

Relato um dia incomum

Deito. Mil flashes vindo à minha cabeça. Flashes de um dia incomum. Milhares de pensamentos atravessando minha mente, minutos antes de meus olhos se fecharem. A vitoriosa "Insônia" perde para o sono que se aproxima a galopes, embaralhando a lógica.

Hoje, vi o futuro, enquanto declamava algumas angústias juvenis. Entre meus experientes interlocutores, vi as rugas que terei, os cabelos brancos, os gestos lentos e o corpo curvado. Eu, que tenho minha visão sempre além, no horizonte, no infinito, vi minha vertebral envergadura empurrando o olhar na direção dos meus passos lentos. Vi minha alegria singela e vagarosa...

E me vi com olhares admirados para o vigor de uma jovem risonha, um rosto conhecido... Aquele rosto era emoldurado pelos meus cabelos, mas ainda cheios e castanhos. Possuía os meus olhos pretos, só que mais brilhosos e inquietos. . .

segunda-feira, maio 29, 2006

Tú me acostumbraste




"Tú me acostumbraste a todas esas cosas, y tú me enseñaste que son maravillosas."

domingo, maio 28, 2006

La reina (Pablo Neruda)

Yo te he nombrado reina.
Hay más altas que tú, más altas.
Hay más puras que tú, más puras.
Hay más bellas que tú. Hay más bellas.
Pero tú eres la reina.
Cuando vas por las calles
nadie te reconoce.
Nadie ve tu corona de cristal, nadie mira
la alfombra de oro rojo
que pisas cuando pasas.
Y cuando asomas,
suenan todos los ríos
en mi cuerpo, sacuden
el cielo las campanas
y un himno llena el mundo.
Sólo tú y yo,
sólo tú y yo, amor mío,
lo escuchamos.

domingo, maio 14, 2006

NOVO!!!

Malu de bicicleta quer interagir com você!!! A partir de agora, você poderá votar na nossa enquete.

*Caso as opções não sejam suficientes ou, se você quiser expressar sua opinião,vivemos em um país democrático! COMENTE À VONTADE!

Leia a "Carta ao Zézim", de Caio Fernando Abreu, e responda: "Qual o momento mais importante quando você escreve um texto?!"

domingo, maio 07, 2006

Carta ao Zézim

“Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta.”

Caio Fernando Abreu
Coloquei as palavras de castigo por não conseguirem expressar o que estou sentindo.
Ass: Engasgada.

sábado, maio 06, 2006

A carta de Gregória

A Jesus Cristo Nosso Senhor
"Se uma ovelha perdida e já cobrada
Glória tal e prazer tăo repentino
Vos deu, como afirmais na Sacra História,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada
Cobrai-a e queirais, Pastor Divino,
não perder na Vossa ovelha a Vossa glória."
--Gregório de Matos (1623-1696)



Mãe, feliz dia das mães. Submeto-me às comemorações oportunas ao comércio, embora eu bem saiba que, tão logo passar este segundo domingo de maio, o foco mudará e muitas mães permanecerão ocupando seus lugares entre a mobília.

Não é o seu caso.

Devo dizer que a grana estava curta e este ano não haverá presente embrulhado sobre a cama, rosas, cestas ou homenagens dispendiosas. Não tome esta falta como se representasse outras (falta de amor, por exemplo). Além disso, como sabe, o trabalho e os estudos me consomem. Cansada, mal tenho ânimo para lhe remeter esta carta. Mas a data não passará em branco. Seu presente agora se põe a escrever estas poucas linhas.

Minha Senhora, esta ovelha vem lembrar-lhe que Vossa glória reside na capacidade maternal de abstrair, relevar, perdoar, doar-se e amar incondicionalmente.

Meus erros recorrentes se traduzem em superioridade quando confrontados com Vossa habilidade maternal para compreender todos meus traços de imperfeição.

Portanto, neste momento afirmo: Eu sou o seu presente, pois lhe dou a chance de ser melhor a cada dia.

Não me agradeça.

Um beijo da filha que te ama,

Gregória.

sábado, abril 22, 2006

V = ∆S / ∆t

Em quinze dias ela aprendeu a andar de bicicleta. Tombou algumas vezes. Chegou de lábios inchados e vermelhos, joelhos ralados, manchas roxas... Um aprendizado dolorido e colorido. Ela sobe na bicicleta e precisa de uma mãozinha amiga e "prima" para se equilibrar. Mas em pouco tempo ela já consegue tomar impulso sozinha. E o primeiro passo para o equilíbrio é não pensar no desequilíbrio. De queda em queda as duas rodas vão se tornando suficientes e ela aprende a frear no momento certo: antes de colidir com postes, meio-fio, pedestres, carrinho de pipoca, árvore, banco de praça e o que for. Arrastada de seu tempo costumeiro, a experiência de aprender a deslocar-se sobre duas rodas chega para ela no momento em que já conquistou o equilíbrio da maturidade. Antes, quando ainda alimentava uma infantil instabilidade emocional, lhe fora vetada uma prática que só cabia aos homens; abrir as pernas em posição tão erótica quanto aquela que exige a pervertida estrutura de uma bicicleta. A mentalidade de um adulto, que impregnou o brinquedo com uma pudica promiscuidade, retardou o aprendizado dela, que agora sem nenhum pudor, solta cada perna para um lado do banco e faz sobre os pedais a força transmitida para a roda traseira através da corrente. E, exercitando o físico e a Física, ela comprova a cada pedalada a equação básica V = ∆S / ∆t. Ou seja: a vitória é igual à Variação de Suor dividida pela Variação de tombos.


Continua...
*Este texto foi escrito com base na experiência real da mais nova ciclista de Niterói-RJ.

sexta-feira, abril 07, 2006

Fazendo sacanagem...


A menina, 10 anos ou menos, convidou o tio:

- Tio, vamos fazer uma sacanagem?!

O tio se assustou e logo pensou como essas crianças de hoje em dia estão precoces e como isso queima etapas e como é preciso rever a educação das nossas crianças e que a TV é a grande culpada e que os pais estão muito ausentes, porque têm que trabalhar o dia todo para ganhar uma miséria, e que a exploração pelo capital corrói a sociedade, compromete os valores da família e blá blá blá blá...

O pai da menina se aproximou e perguntou qual o motivo da indignação do cunhado.

- Cumpadre, não sabe o que acabo de ouvir da sua filha.
- O que?!
- Ela me disse: "Tio, vamos fazer uma sacanagem?"
- E você esperou que ela terminasse?

O tio balançou a cabeça respondendo que não.

- Então espere ela terminar o convite.

E o tio, constrangido, perguntou para sobrinha qual sacanagem ela queria fazer com ele.

E, com um jeitinho indecente que só as crianças mais puras conseguem ter, a menina respondeu risonha:

- Tio, vamos apertá a campainha do vizinho e saí correndo?

quinta-feira, março 30, 2006

PRESSA


“Nossas emoções cabem em uma hora e meia?” Embrulho minhas emoções para presente, sem retocá-las um milímetro, sem maquiá-las. Em seguida, faço uma oferenda para o mundo ou para o recorte dele que colei no meu mural de fotos, de instantes e pessoas importantes. O pacote é feito de tempo e tem prazo de validade. Passado o prazo se abrirá forçando um desnudar completo de minhas emoções. É como uma criança no ventre da mãe, que permanece embrulhada pelo tempo exato da gestação e encerrado o prazo rasga avidamente a cortina que lhe dá acesso ao mundo. Corre-se para desembrulhar o presente, choro, catarse... Qual o tempo necessário para empacotar cada emoção? E se ela nascer desnuda de um estouro, derramando-se sem hora pré- determinada, sem anestesia? Em uma hora e meia cabe a emoção de um bom resultado na prova do colégio. Mas não cabe a emoção de um primeiro beijo, menos ainda do último. Uma hora e meia é um embrulho enorme para a emoção de um torcedor que vibra com o gol do seu time no amistoso. Mas é extremamente pequeno se este embrulho guarda a emoção pelo gol da seleção aos 48 minutos do segundo tempo na final da Copa do Mundo. Aqueles que pedem a mim uma emoção compacta, envolta no tempo que me é concedido entre um reclame e outro, não entendem de emoção nem de tempo. Minha ansiedade de ver a cortina se abrir é enorme, corro para chegar logo o momento de ver minhas emoções no palco. Não se disfarçando ou se contorcendo para caber no tempo do espetáculo, uma hora e meia. Quero minhas emoções livres das amarras. Amarras que oprimem, me obrigando a sentir no compasso dos ponteiros. Amarras de um belo embrulho que transforma minhas emoções em presentes, aprisionados pelas correntes das perspectivas em relação ao futuro.

terça-feira, março 14, 2006

"EU TE _ _ _"

Saio da minha experiência hermética e me exponho ao transe. Ao transe de um indivíduo em busca da troca. De um indivíduo que aguarda profunda e ardentemente a oportunidade de deixar sua individualidade solitária. A oportunidade de pertencer sem carecer ou depender. A chance de compartilhar sem temer a vulnerabilidade de conjugar o famigerado verbo na primeira do singular: "EU TE ...". Mas conjugar sem o receio angustiante da flexão no plural: "Nós nos...?"

Entrego-me ao transe de discorrer sobre algo que não conheço. Surpreso, leitor?! E, por acaso, você conhece? De qual tipo? Sim, há tipos, Vários! Conhece o de Camões? Ou o de Vinicius? Ou, quem sabe, não inventou um tipo novo em suas andanças?! Sem problemas, leitor passivo. Não precisa se abrir. Afinal, quem se expôs ao transe fui eu. Exposição, uma atitude difícil, encantadora. Como um quadro na galeria ou como uma bailarina na caixinha musical é fácil. Desafio-o a tentar a exposição tal qual a de um crooner amador que sempre recebe vaias, mas arrisca-se todas as noites a, quem sabe, ser ovacionado. Afinal, conjugar este famigerado sentimento – você sabe qual – é um desafio para iniciantes e doutores. A última é sempre a primeira vez.


Acostumado a rimar sempre com terminações em “OR”, quase me surpreendi pedindo “Por favor!” Surpreso, leitor?! Pois saiba que esse conjugar complicado não aceita orgulho, tampouco vaidade. Rima-se com “dor” e com “felicidade”. Sim, ao mesmo tempo. Ora, sei sabendo! De ouvir dizer, de ver na TV, de ler nos livros, de ver nos aeroportos, nos portos... Claro, rima-se com partida e chegada, com saudade, com cessão, com sessão... É possível rimar com fantasia, com realidade, com perenidade, com eternidade. Mas, devo confessar, estas últimas rimas me parecem bastante escassas, como me parece escasso o.... Você sabe o quê. Como? Medo? Não! Só não quero falar dele hoje. Por quê? Nada de mais, não quero e não vou. Posso voltar ao meu transe?! Obrigada!

Entre um fogo que arde sem se ver e algo finito posto que é chama? Não sei. Não queria me queimar. Inevitável? Você acha? Mas por que cargas d’água tem porque tem que ser desse jeito masoquista? Você ri? É trágico! Sei, engraçado porque não é você que está na berlinda. Eu sei. Conjuga-lo é colocar-se nela, na berlinda. Sim, “lo” é “ele”. Não adianta, não vou pronunciá-lo. Ainda não. Não hoje. Amanhã, talvez. (MLCM)

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

"O tempo não pára!"

Insônia

A madrugada me abriga poeta.
Foge a expectativa de ver Morfeu se aproximar
As palavras entram em ebulição
Pedindo um lugar no papel.
A noite é o jardim onde semeio
Dúvida, anseio e esperança.
A noite me abriga mulher
Me brinca criança.
Quando o silêncio impera
Faz-se euforia interna
Minh’ alma entra em festa
Meus olhos se abrem arregalados
Sou iluminista e revolucionária.
Incendiária, lidero multidões.
Escrevo o manifesto dos loucos
E recito publicamente entre quatro paredes.
Próximo passo: resgatar a sanidade.
À noite, infinita enquanto noite,
O passado me visita
Ganha a forma desafiante da inspiração
Ou se traveste de nostalgia.
Os cães ladram e a carruagem estaciona,
Enquanto dorme a cidade.
Sobra tempo para vestir cada ilusão
E desfilar pelo mármore cristalizado
Construo mil cenários.
Sou múltipla persona, ser fragmentado.
Sambo na ágora, senado boquiaberto.
Sou Baco e Apolo na festa do vinho.
Toureio na Acrópole para as ruínas do Parthenon.
A noite fricciona em minha pele
A aspereza da solidão
E a tez aveludada das possibilidades.
À noite posso perder o ritmo e a rima
Me permito pecadinhos e heresias
E enquanto adormece a Divindade
Posso abdicar das boas maneiras,
Abrir mão do pudor e deslizar na luxúria.
Só o que me freia é a contradição.
Aquela que me alicia, também atemoriza.
Então sinto falta de ombro, mãos e conivência.
É quando durmo, embriagada de sono e ansiedade.

(Malu de Bicicleta)
***

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Jardim

"Meu conceito de jardim determina o que é praga ao redor de mim..."
(Affonso Romano)
Mas também determina o que é flor. E isso o Affonso Romano esqueceu de mencionar.
Eu lembro sempre.

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

A BANCA E O JOGO

“Inquirido disse: Que no dia de hoje, por volta das 14 horas e 45 minutos, a declarante caminhava pela Praia de Botafogo, em sentido ao Botafogo Praia Shopping, pelo calçadão, quando em frente à rua Farani, um grupo de três indivíduos que aparentavam ter entre doze e quinze anos, que com a mão sob a camisa, aparentando estar armado, um dos jovens disse: “Passa o celular e o dinheiro!”, sendo atendido; Que após o roubo, o grupo seguiu caminhando pelo calçadão em sentido ao Aterro do Flamengo, quando a declarante ouviu alguém gritar e olhou para trás...”
A declarante sou eu. Quisera não fosse. Quisera não tivesse nada a declarar. Mas tinha. Tinha muito mais do que me permitia o espaço reservado para meu depoimento, enquanto vítima e testemunha. Testemunha da insensibilidade humana, testemunha do desespero, da banalização, bem como da indignação e do medo quando transformados em individualismo e perversidade. A contragosto testemunhei tudo isso no dia mais triste de toda minha vida. Uma vida de poucos dias tristes, o que não minimiza o sofrimento do qual fui uma mera testemunha ocular.
Pudesse acrescentar alguns detalhes ao meu depoimento, assim o faria...
Que no dia de hoje, por volta das 14 horas e 45 minutos, a declarante, eu, caminhava pela Praia de Botafogo, trajando seu vestido novo, que fez questão de estrear no dia em que suas horas mal dormidas e todo seu esforço seriam recompensados e reconhecidos: “A Banca Examinadora, após argüição, decidiu pela aprovação com grau 100”. Possivelmente, sem perceber, a declarante, eu, trajava um sorriso de vitória ao ser abordada por três indivíduos enquanto caminhava pela Praia de Botafogo em sentido ao Botafogo Praia Shopping; (...) Que após o roubo, o grupo seguiu caminhando pelo calçadão em sentido ao Aterro do Flamengo, quando a declarante ouviu alguém gritar, olhou para trás e viu algo voar no céu, dar piruetas no ar a cair imóvel no asfalto que queimava sob o sol de 40 graus.
“Que deseja esclarecer que o taxista, autor do atropelamento não pôde evitar o acidente por se tratar de uma pista de alta velocidade e ter desviado dos outros dois indivíduos momentos antes, vindo a colher a vítima; Que com o indivíduo atropelado foi arrecadado o telefone e o porta-níquel com o dinheiro da declarante, sendo a vítima do atropelamento reconhecida ainda no local como um dos autores do roubo que fora vítima no dia de hoje...”
Eu, que prestei depoimento, que fui abordada, roubada e algumas horas depois obtive na 10ª DP meus pertences de volta; dos quatro, eu já não era tão vítima. Não conseguia me sentir vítima, tampouco lesada, vendo o sofrimento daquele garoto agonizando diante dos policiais e taxistas.
Trânsito lento, curiosos passam, espiam. Mais um acidente, como tantos que ocorrem pela cidade, pelo país. Fez por merecer. Ora, procurou!Tem mais é que morrer! Pior é que vai sobreviver e, réu, vai fazer outras vítimas. Garotos como ele, assaltam, roubam e até matam! Sem dó nem piedade. E aos 18 anos, voltam a ter a ficha limpa. Esse mundo é muito injusto... Infelizmente os outros dois escaparam. Antes tivessem sido lambidos pelo táxi, rodados no ar e caído agonizantes no chão. Esses garotos têm sete vidas e ainda gastam nossos impostos ao serem atendidos em hospitais públicos. O coitado fritou no asfalto! E que prejuízo esse garoto não deu ao se jogar na frente do táxi que passava, no mínimo, a 70 km/h. Uns R$ 500, calcula o taxista, candidatando-se ao posto de quinta vítima. Por enquanto, somos quatro, os três garotos e eu, testemunha e declarante.
Olhando o corpo no chão, imóvel enquanto não chegava o carro dos bombeiros, pensei na história dele. Um pé do chinelo jogado longe, talvez número 36, talvez aquariano como eu, talvez João, talvez Wellington, talvez irmão de mais 10, talvez filho único, talvez, talvez... Mas o que importa? Afinal, naquele instante era um corpo, era o corpo de um pivete que após se exibir dando piruetas no ar, permanecia segurando firme meu porta-nível e meu celular, devidamente resgatados depois que eu, caprichosamente, assinei três vias de um documento lá na 10ª.
O corpo. Sei que isso é desagradável, mas ainda tenho algo a declarar. Não sai da minha cabeça aquele corpo de bruços, aquela respiração ou qualquer coisa parecida que fazia as costas levantarem e descerem, levantarem e descerem num ritmo bem marcado, acelerado, como um animal abatido que resiste só por resistir, sem qualquer pretensão, apenas insiste em sobreviver.
Hoje eu fui testemunha ocular do visível e do invisível. Testemunhei horrorizada que a vida vale muito pouco nesses dias. Testemunhei que existe a pena de morte no meu país, debutante nas questões democráticas. Testemunhei que a sentença é dada sumariamente aos delinqüentes juvenis sem passado, sem história, sem desculpa, sem conserto, sem identidade. Apenas “pivete”. Ou o carinhoso e irônico diminutivo: “pivetinho”.
A declarante, eu, fui testemunha e vítima. Uma vítima que não se reconhece como tal. Uma vítima boba, complacente com os infratores, ladrões, delinqüentes... Indivíduos que lesam a sociedade de bem, que paga seus impostos e se ressente pela falta de segurança que assola este país.
Hoje, a historiadora aprendeu, na prática, as regras do jogo. Aprendeu como vivem indivíduos clandestinos, sem passado, sem história, sem justificativas. E por isso, previamente culpados.

domingo, fevereiro 05, 2006

Desafio

"Vou com um sorriso no rosto e uma idéia na cabeça!
Depois dessa montanha (que daqui parece enorme), espero encontrar algumas ladeiras para deslizar feliz. Até os próximos desafios..."

Malu de bicicleta

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Moeda da sorte

Moeda da sorte
Inspirado em "BROWN PENNY" (Moeda Marrom)
by William Butler Yeats


Eu sussurrei: “Sou muito jovem”
E depois: “Envelheci o bastante.”
Então, joguei uma moeda
Para descobrir se eu seria amada

Ah! Moeda da sorte, moeda dourada,
Diga-me onde encontro o amor
Qual o sentido, qual a direção?
Como alcanço sua morada?

“Não escale a montanha vigiando a queda”.
Ah! Moeda dourada, dourada moeda,
Fui seduzida por um ritmo descompassado.
Meu par de novo bateu em retirada.

Como conter minha precipitação para saber o amor?
Como ser sábia e não viver a ansiedade?
O dia chega e flagra meu torpor.
Será o amanhecer um convite à possibilidade?

A música ainda toca ao fundo...
Ah! Moeda da sorte, dourada moeda.
Eu sei, cedo demais para um coração tão contrariado.
Mas esta noite a lua minguou e o tapete negro estava apagado.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Um convite para o dia seguinte...

Convite

CONVITE

Boemia, venha ver o pôr do sol!
É cedo para você, mas tarde para quem madruga antes das 6.
Quando ele mergulhar e você enfim aparecer
Não vá dizer que não avisei.
Não adianta me culpar pelo estrago que você fez.
Boemia, venha ver o astro rei
Sem essa de sair só depois que a noite ancorar
Deixa de história, para de se enfeitar.
Boemia, ele já está sumindo...
Corre se não vai perder
Deixa pr’a lá o que tiver de fazer
Isso não é ansiedade, tampouco afobação.
Quem lhe chama é a cidade, é São Sebastião.
Boemia, deixa seu tambor um pouco de lado
Vem batucar no meu terreiro
A chamo para ver o espetáculo
Você diz que só no próximo fevereiro.
Boemia, por que espera a festa da carne?!
A comemoração é agora!
Boemia, venha ver o pôr do sol!
Minha cara, que demora!
Já era... ele mergulhou.
Um bêbado se insinua...
Quer lhe pagar uma bebida, fazer uma brincadeira...
A noite é sua, nua, faça bom proveito!
Mas quando o sol escancarar sua bebedeira
Boemia, minha cara, sua graça não terá mais efeito.

MLCM

sexta-feira, janeiro 06, 2006

"Loucura"

Malu conheceu uma senhora cujo filho, esquizofrênico, está internado. Ao escutá-la narrar seu sofrimento de mãe vendo as ilusões da mente perturbada de seu filho, ela fingiu uma força que desapareceu mais tarde, quando veio um choro inexplicável.

"Ela" se destaca mais pela paixão de suas esculturas, pela riqueza de sua percepção do mundo modelada no barro, no bronze... Mas era a "loucura" de Camille Claudel que se fixara na mente de Malu enquanto ouvia a senhora. Aquela mãe contava algumas das alucinações de seu filho, que comemora todo dia o aniversário da irmã e não se alimenta porque seus olhos lhe pregam peças e acusam a existência de bichos em sua comida. A agressividade de um jovem, vítima das seqüelas da dependência química, e o descontrole sobre os instintos sexuais são episódios deprimentes de uma vida esmagada pela loucura.
Mas o que é a loucura? Serão os loucos realmente loucos? Serão os sãos realmente sãos?

O que dizer para aquela mãe? O que "Malu no país das maravilhas" pode dizer? Apenas que todos temos nossas "loucuras", nossas alucinações. Malu de bicicleta teme a escuridão. Tenta se convencer do contrário, mas quando confrontada com a imprevisibilidade que há na ausência de luz ela imagina que há pessoas a espreitá-la. Há casos sérios de pessoas que têm graves alucinações ao se apropriar de coisas alheias e afirmarem convictas total inocência no banco dos réus ou das CPIs da vida. Há outros que passam a vida desejando que o fracasso alheio se traduza magicamente em seu sucesso instantâneo. Cadê as camisas de força?! Estariam escassas no grande mercado da impunidade?!

A loucura é algo dolorido - não deixo de imaginar Camille quebrando todo seu ateliê pouco antes de ser internada. Mas também é curioso pensarmos que os loucos de hoje podem ser os gênios criativos, a escultora brilhante, o inventor magnífico... Tudo no magnífico amanhã, o senhor dos contrastes. Para Malu, um reservatório empolgante de possibilidades e um enorme e assustador buraco negro, cheio de imprevisibilidade.
"Mais louco é quem me diz que não é feliz..."