quinta-feira, dezembro 14, 2006

De: Álvaro de Campos / À Malu de bicicleta

Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...

Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

sexta-feira, dezembro 01, 2006

"Caramba, desculpe!"

- Então você é notívaga...
- Noti o quê?
- Notívaga.
- É, acho que sou.

Sem conseguir dormir ela lembrou de quando ouviu a palavra pela primeira vez. Foi a primeira que ele a ensinou. Gostava de aprender... Houve um tempo que passou a se encantar com o aprendizado acerca da reprodução das briófitas e pteridófitas. Bons tempos! Era só estar na companhia da pessoa certa e se deparar com alguns musgos ou samambaias para desfrutar de uma verdadeira aula sobre os vegetais sem flores, seus ciclos divididos em fases assexuada e sexuada, a afinidade com ambientes úmidos... Um mundo a parte no qual ela mergulhava, quase sempre de cabeça. Ela tinha o costume de se apegar às pessoas que lhe ensinassem coisas. Talvez um pouco por isso tenha se encantado com o professor de piano. Adolescente, ficava sem jeito quando ele pegava em seus dedinhos para colocá-los na posição certa sobre o instrumento. Achava graça quando o professor dava um tapa carinhoso em seu dedo mindinho que sempre apontava para o alto, enquanto os demais tateavam as brancas e as pretas. O mestre era um sujeito que fazia o estilo David, de Michelangelo. Exceto pela parte desavantajada, que ela sequer pensava em conferir, e por ser um respeitoso pai de família que não se prestaria ao ridículo de ficar posando nu por aí. Enfim, era fato. Pessoas ‘didáticas’ a conquistavam. E ela sabia reconhecer de cara o tipo: autoconfiança aparente, discrição, frases de efeito, palavras difíceis e aquele ar inconfundível de quem diz “já passei por esse caminho”, “já tenho a receita” ou ainda “já tenho o bolo pronto”. Não que se sentisse atraída por tipos completamente arrogantes. Isso ela abominava. Tinha que haver uma delicadeza. E mais que isso, uma generosidade. Não fosse assim, a conversa pareceria insuportável logo nos primeiros minutos. Tampouco poderia ser alguém prolixo, tinha que ser o tipo econômico, porém certeiro. Um tipo que ela própria sempre desejou ser, mas poucas e raras vezes conseguiu. Na verdade, ela até possuía a capacidade de atrair a atenção dos seus interlocutores, mas não conseguia mantê-la cativa. Dois defeitos a levavam ao fracasso em suas muitas tentativas: 1. a ansiedade flagrante de encantar o ouvinte, 2. o excesso. O segundo, claro, decorrente do primeiro. Ela sabia que a maioria dos interlocutores não se sentiam confortáveis diante de olhos latejantes, de gestos exagerados, de palavras atropeladas, de assuntos sobrepostos... Além de ser difícil para alguns acompanhar esse ritmo, acabava virando ruído. Na comunicação é assim: muita informação sobreposta e mal apresentada pode, e frequentemente vira ruído. Isso é característico de pessoas que sofrem da “síndrome do mau receptor”. Claro que em um diálogo somos sempre emissores-receptores. Mas há pessoas, e ela era mestre em cometer este erro, que se esquecem que a comunicação é composta por esse binômio (esta palavra está se repetindo em meus textos...). Quando começava a falar, pronto! Às vezes desandava em divagações intermináveis, dava voltas e mais voltas, criava neologismos, invertia ditados populares, passava a quinta e ia embora. Até que parava por uns dois minutos e percebia um enorme vácuo criado pelo silêncio repentino. “Caramba, desculpe! Acho que falei demais!”.