quarta-feira, dezembro 28, 2005

Licença poética

Até quando?
Até quando vou atravessar os outros como se eu estivesse dentro de um carro olhando a vida correr lá fora e esperando o momento certo de descer? Até quando vou sentir que há um sinal fechado logo ali adiante, justamente em frente àquele lugar onde eu queria dar uma paradinha, e quem sabe ficar um tempo? Até quando vou me cansar de um ano e correr para comprar a agenda do seguinte, tentando recomeçar a viagem que já dura mais de 20 primaveras. Até quando vou fazer questão de me jogar do carro justo nos lugares mais obscuros só para me certificar de que não estou perdendo alguma luz escondidinha e impossível de se ver da homogeneidade retilínea da estrada? Até onde vou ter que ir para encontrar o lugar que estava no cantinho do mapa que rasgou? Até quando vou procurar justamente pelo cantinho rasgado, quando há um mapa enorme indicando novas direções, novas possibilidades? Até quando vou me perguntar “quantos quilômetros faltam?!”? E quantos quilômetros faltam? E aquela sensação de que esqueci de carregar algo para essa viagem? Algo, que não encontrarei em nenhuma parada na beira da estrada, mas que, eu sinto, me fará uma falta enorme! É uma bagagem, uma leitura, um contato, um lugar, uma experiência, uma tentativa, um erro, um desafio, uma bobagem estratégica só para contrastar, só para dispersar... É uma nota, uma melodia, uma história, uma patota, uma farra, “um espinho na mão, um corte no pé”, uma meditação, uma pausa para ir mais longe... Mas onde mesmo?!



"Quem teve a idéia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente"(Carlos Drummond de Andrade)


Stop!
O carro parou
Ou foi a vida?
**Malu de bicicleta passa bem. Estava um pouco desidratada, chegou a ter algumas alucinações. Imaginem que ela pensou que podia parar o tempo para descansar um pouquinho...

sexta-feira, dezembro 16, 2005

Planície

Morro acima. Morro abaixo. E mais morro, morro. E quase morro de tanto morro.

Assim Malu de bicicleta traduziria seus últimos dias. Longas subidas... Trajetos inclinados, 40, 50°. E o tempo, por aí: 40, 50°... Sede, muita sede. A garganta foi ficando seca, as pontas dos dedos geladas, a visão turva, escura... pow! Desculpem os sonoplastas de plantão, mas essa onomatopéia foi exatamente o tombo. Não o primeiro, apenas um dos muitos. Lá no alto do morro, Malu foi ao chão. Desidratada, torrou sob o sol. O solo recebera seu corpo de forma grosseira, sem a recepção calorosa de um colchão, de uma rede, da areia, da água... Água! Quem dera... O morro se tornou maior, mais alto, parecia alcançar o céu. E por isso faltou pouco para que se assemelhasse com Malu, que quase ia encontrar com o pai sem sequer marcar hora. No alto do morro, ela mirra, morre e ninguém socorre. Triste fim.


Um resquício de consciência e Malu pensa que já havia subido tanto! Já era para ter chegado... Algo estranho acontecia com aquele morro que a cada dez passos se esticava vinte, numa progressão alucinante. Com seu resquício de consciência, já num estado de delírio, aquele chão de terra batida, rachado pelo sol, ficou mais confortável. Uma nuvem cinza e pesada encobriu o sol e fez chover água de banhar e água de beber. Uma brisa um pouco mais atrevida levantou-lhe o vestido que ia até abaixo do joelho. Braços fortes e sadios ergueram seu corpo que parecia ter se separado da alma ao ser suspenso em um único segundo. Daí, mais morro. Morro, morro, morro...

sábado, dezembro 03, 2005

Roda Vida

"Roda mundo, roda-gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração"

Roda Vida (Chico Buarque)


“O tempo rodou num instante nas voltas do meu coração”.

Ela adormeceu um instante e quando voltou nada parava no lugar. A rotação da Terra seguia em passos retardados, débeis como seu sangue... Ela não saiu do lugar em que estava, continuou rodando naquela mesma roda que se soltou da bicicleta, apostando em novos rumos. E, como aquela roda, ela quis também se soltar, deixar seu jeito insosso, ser de carne e osso e rodar... No cotidiano a inércia não admite impulsos e ordena: que tudo permaneça igual, à menos que haja... atrito!

O sangue desacelerou em seu percurso sempre tão frenético, ele sempre tão preocupado em dar tempo, atarefado com a responsabilidade de enxaguar constantemente todo o corpo... Assim foi. Um coração arrebatado permitiu o atraso, ele próprio consentiu em bombear mais devagar... E o sangue deu suas voltas lentamente, retardando todo o resto.


Uma voz ébria aconselhou: “Por hoje deixe rodar, pois amanhã tudo permanecerá como sempre...” Insossamente parado.

No picadeiro, ela foi a atração. Rodou, rodou, se permitiu rodar...

A roda roda,
ela roda
na roda de samba,
o samba roda
ela roda,
bamba, samba...


O improvável é o desconforto, mas é também uma brecha mágica para a fascinante descoberta do inverso, do que é adverso, da falta de verso, de métrica, de rima. Quando a rotação cessa: surpresa! O acaso te surpreendeu mais uma vez.


“Me cobrir de humanidade me fascina...
Perfeição demais
Me agita os instintos
Quem se diz muito perfeito
Na certa encontra um jeito insosso
Pra não ser de carne e osso...” (Mosca - Zélia)


Malu de bicicleta descobriu que tinha as ferramentas guardadas consigo e consertou ela mesma sua bicicleta. De novo em linha reta, busca seguir viagem... O circo ficou para trás, será?!