terça-feira, agosto 30, 2005

2° ROUND

Malu segurava em suas mãos algo estranho. Peludo, corpo mole... Um bicho?! Talvez... Uma espécie de cola na parte inferior a impedia de soltá-lo. Pensou o que teria acontecido para que aquele homem se afasta-se sem que fosse preciso um grito ou um chute estratégico, nada. Apenas se debatera por alguns instantes. Com as pernas imobilizadas, articulou os braços aleatoriamente até que o homem se afastou, sem que Malu tivesse escutado o juiz determinar o fim da luta. Vitória? De quem?!

Seria apenas uma pausa para o golpe de misericórdia? Seria o momento de pedir clemência? Será possível que o inimigo tenha sido tomado por uma súbita compaixão, como o perseguidor de cristãos da Bíblia que se convertera? “Por que me persegues, Saulo?” Bom, sendo assim, pensou Malu, seu oponente deveria estar cego, como o fariseu, personagem bíblico atingido por uma forte luminosidade. A luz que cega é a mesma que ilustra.

Por vezes quando fecho os olhos tudo fica mais claro. Aliás, ultimamente, quanto mais os mantenho abertos menos enxergo. Já não confio no que eles me dizem. Vejo feições que não consigo interpretar e o mundo se dissimula, me pregando peças a todo instante. Malu, igualmente, recusava-se a abrir os seus olhos, tentando se desvencilhar daquele corpo estranho preso às suas mãos. Em vão. Pela respiração ofegante, teve a sensação de que o adversário apenas se preparava para um novo embate. Engano. Curiosa, arriscou um olhar de relance, temendo o que veria. Atordoada, pensou que havia outro homem além daquele com quem acabara de digladiar. Outro oponente?! Como?! Ergueu-se rapidamente. Teve nojo ao notar o vermelho que estampava a toalha jogada ao seu lado. Ainda assim, cobriu-se.

Sentado sobre os escombros daquela guerra sangrenta, um homem. Um outro homem. Cabisbaixo, humilhado... Não! Era o mesmo homem. A mesma mão ferida, os mesmos cordões pesando no pescoço, a blusa desabotoada, o peito à mostra... Era o mesmo. E estava novamente ferido.

Como explicar que Malu detinha entre seus dedos a força de seu adversário? Como imaginar que a determinação de um sujeito fosse abalada com um simples golpe desferido contra sua vaidade?! O Sansão perdera sua força e virilidade, instantanea e subitamente. Uma Dalila contrariada segurava numa das mãos as falsas mechas.

Quando se deu conta do caráter cômico da situação, Malu teve vontade de rir, mas a prudência lhe soprou ao ouvido que talvez não fosse adequado. E quem escuta essa senhora?! Dona prudência... Estamos sempre a contrariá-la. Pior se torna quando somos tomados pela dúvida que atormenta as almas barrocas, indecisas entre a catarse e a contenção:

“Mas desde o Céu a Santa Inteligência
Com doce inspiração mitiga a chama;
Onde a paixão ceda à prudência,
E a razão pode mais, que a ardente flama:
Em Deus na natureza, e na consciência
Conhece, que quer mal quem assim ama;
E que fora sacrílego episódio
Chamar à culpa amor, não chamar-lhe ódio.” (Caramuru: poema épico, de Santa Rita Durão)

(Mais uma vez destôo. Sugerirei que Malu escolha um(a) narrador(a) com menos pretensões a “eu-lírico”)


Catarse! Uma gargalhada ecoou entre os morros. Como quem desfere seguidos golpes sobre o oponente já derrotado, Malu não se conteve. Enquanto se apressava para abandonar o ringue, tripudiava. Numa das mãos, carregou seu merecido troféu, a peruca. Para trás, deixara um Sansão completamente nocauteado.


Vou fechar meus olhos por algumas horas e esperar que faça-se a luz! (Boa noite!)

segunda-feira, agosto 22, 2005

1° ROUND

Uma tinta vermelha coloria o chão. Na verdade, não era uma tinta. Na verdade, não predominava. Aquele vermelho forte que simboliza paixões, que arrebata multidões, que é pano de fundo de uma luta quase tão antiga quanto o pecado original; aquele mesmo vermelho lambuzava toalha e roupas, mas apenas respingava sobre as folhas secas do outono.

O cenário faria qualquer espectador recém-chegado apostar que houvera um confronto. As tábuas que antes serviam para esconder um corpo ensaboado agora estavam caídas. O banheiro improvisado ruíra. Nenhum grande estrago, se compararmos às quedas históricas (a Bastilha, a Bolsa em 29, o Muro de Berlim...) Assim, a queda de um mísero W.C não é nada se comparada a de um W.T.C.

Nenhum dos dois lutadores saberia naquele momento distinguir por onde escorria o sangue. Estamos naqueles ínfimos segundos entre o corte e a dor. Não tenho experiências com cortes. Até poderia falar sobre uma vez que fui tentar descascar uma laranja e “Ai!” Só uma pontada. Outras tantas, quando faço exame de sangue, o médico nunca encontra minha veia. Uma, duas, três... até cinco tentativas. Só uma espetatinha e depois vejo meu sangue jorrar para dentro do tubo de ensaio. Lindo! Não tenho muitas experiências com dores, não com as físicas. Mais com aquelas que desatinam sem doer.

Cá estou eu novamente me intrometendo em uma história que não é a minha. Assim sendo, não vou tentar descrever o corte, a dor, tampouco o amor. Antes de prosseguir, acabo de lembrar de um filme: “O óleo de Lorenzo”. Os pais de um garotinho lutam para curá-lo de uma grave doença. Daí, quando o filho já está quase inconsciente, a mãe fala algo como: “Lorenzo, fale para o seu dedo mindinho falar para sua mão falar para o cérebro ordenar que ele mexa." Acho que é esse o caminho a ser percorrido - mindinho-mão-cérebro-mindinho. Uma música tocante, minhas lágrimas embaçando a visão, Lorenzo aéreo e de repente... O mindinho mexe! Aleluia! Quase desidrato de tanto chorar.

Bom, assim aconteceu. O dedo falou para a mão para falar para o cérebro... “Ai, sua vadia! Você me cortou!” Ofegante e assustada, a autora da obra estava caída sobre as tábuas daquilo que minutos antes era um banheiro. Levantou a cabeça. Como doía! Doía o corpo inteiro. O homem a olhava, furioso, enquanto tentava estancar o sangue com uma toalha.

Em sua mão esquerda Malu ainda segurava o canivete, mas alguma coisa escapulira da outra mão(!!!). Ao perceber uma certa mudança na feição daquele homem, ela rapidamente se deu conta do que faltava. “Vou gritar!” Ameaçou, mas não gritou. Ficou quietinha, em silêncio. Aos poucos sua respiração foi ficando menos descompassada. Os enormes olhos azuis daquele homem foram ficando maiores e mais azuis, à medida que iam se aproximando...

segunda-feira, agosto 15, 2005

Estado onírico

Há quanto tempo seus pés não recebiam uma boa esfregada! Amassados dentro do tênis ou esparramados na sandália, os dedos acumulavam aquela sujeira preta que se acomoda dentro das unhas. A escova estava escura e a água que escorria formando um pequeno lamaçal em volta do banheiro improvisado era da mesma tonalidade.
Malu soltou os cabelos - já na hora de aparar - e aos poucos, bem aos poucos já que o chuveiro retardava o processo, ela foi sentindo o cabelo sendo encharcado.Gélida, a água parecia penetrar em sua cabeça, esfriando seu cérebro, tranqüilizando-a até se sentir alcançar uma outra dimensão, aquela para onde vão os contemplados que conseguem superar anseios e frustrações; ela viajou. Pensou nos próximos lugares que conheceria, pensou em tudo que havia passado, lembrou de sua bicicleta, mas não lamentou, não se inquietou, apenas percorria serena pelos limiares da consciência. Chegava a cantarolar... Era uma melodia que em nada combinava com o lugar, denunciando seu distanciamento.
De repente, um barulho a despertou de seu estado quase onírico. Aliás, sei que a história não é minha e que sou uma mera narradora, mas me veio uma idéia, que preciso expor. Seria a palavra “onírico” da mesma família que “ônus”? Já imagino a professora de latim: “Onírico vem do latim: “ônus”, que significa “aquilo que resulta em perda”.” (Reviravolta na academia! E no Olimpo!) Ainda que pareça uma conjectura absurda, chego a pensar que há um certo sentido. Vejam: quando sonhamos nos tornamos mais vulneráveis, não? E assim mais propícios para cairmos no conto de um vigário mal intencionado. As expectativas ou projeções, disse-me certa vez um amigo, são armadilhas, nas quais só caem os apaixonados e os estatísticos.

Voltando à história... Malu reconhecera aquele chacoalhar. E este se aproximava cada vez mais. Em tempo, o canivete estava na mão esquerda. A direita garantia que a toalha permanece enrolada ao corpo, desnudo e molhado. Enfim, o presente de seu pai serviria para algo além de descascar frutas.

Devo confessar que essa história de onírico me deixou com sono. Vou dormir um pouco. Mas tomarei o devido cuidado para não sonhar. (Como se pudéssemos evitar...)

sábado, agosto 13, 2005

Hora do banho...

O copo estava sujo. No leite boiava a nata. Malu detesta nata. Imaginou que, se pedisse para a moça coar, os olhos daqueles senhores se convergiriam em sua direção. Não era o lugar próprio para frescuras desse tipo. Tentou beber se esquivando da nata. Quanto ao misto, já fora quente um dia.

Enquanto ela comia, notou que o sujeito do cigarro não desviava os olhos. Se esforçou para ignorá-lo, mas isso parece extremamente difícil quando nos forçamos a fazê-lo. É como numa festa, onde tentamos ao máximo não olhar na direção daquele certo rapaz. Contudo, parece que o canto do olho age involuntariamente nessas ocasiões. Bom, neste caso, Malu não desejava que aquele sujeito a abordasse e o canto de seu olho parecia agir guiado por um instinto de sobrevivência. A cada movimento denunciado pelo barulho das correntes, Malu estremecia, temendo que ele se aproximasse. Não se aproximou. Não naquele momento.

Terminando de degustar o banquete, ela procurou se informar sobre a possibilidade de encontrar um cantinho para se recostar até o amanhecer. Não haveria outro jeito.

A alguns metros dali encontrou uma meia dúzia de casas. Famílias construíram seus barracos na beira da estrada. Um dia ainda serão despejadas por alguém que chegará dizendo que quer desenvolver a região pá ta ti, pá ta ta... E vai ser patada para todo lado se alguém ousar dizer que não sai.

Malu dormiu numa casa de família. Uma grande família. Pessoas simples, mas bastante atenciosas. Num mesmo cômodo dormiam pai, mãe e cinco filhos. Como sempre cabe espaço para mais um ou mais uma... Coluna castigada e a viajante se esticou num cantinho apertado da casa, quase junto da porta que dava para a varanda. Mais um pouco dormiria ao relento.

Já caía tranqüila nos braços de Morfeu quando nossa amiga foi acordada por um choro. Um choro miúdo, fraquinho, como se fosse abafado pelas mãos de um sujeito asqueroso que no meio da noite procura um corpo novo, rosadinho e... “Sai de cima dela, seu porco imundo!”, quase gritou. Antes que o fizesse, Malu viu que era a mais velha das filhas e, na verdade, não era propriamente um choro. Não era dor, concluiu. Deixou os dois sozinhos.

De seu colchão, próximo à porta, viu um senhor sair ajeitando as calças. O barulho das correntes não deixou dúvidas. Ao amanhecer, a filha mais velha foi a primeira a se levantar. Só faltava o véu para coroar tanta candura. Embora a menina não aparentasse, já passava dos vinte. Nesses lugares apegados aos costumes mais antigos, pensou Malu, já ficava para titia. Por aquelas bandas casava-se cedo. Foi assim que uma após a outra as casas foram sendo construídas. Quem casa, quer casa. Ainda mais embuchada. Uma roça na frente, umas galinhas no fundo e por pouco não se passava fome.

Malu juntou suas coisas e foi tomar banho. O banheiro ficava um pouco acima do nível das casas, ao pé do morro. Era nojento. Em um buraco todos faziam as necessidades e aquela visitante chegou a pensar que talvez os dejetos carregados pela água das chuvas poderiam chegar até as roças. Por via das dúvidas, não ficaria para o almoço. Foi difícil se concentrar na posição em que se encontrava. Puxou a calça até os joelhos para evitar que entrasse em contato com a terra. Tudo fedia terrivelmente. Malu se agachou e... Bom, detalhes podem até serem bons para reforçar a veracidade dos fatos, mas há um limite.

Por trás de algumas tábuas de madeira estava escondido um corpo desnudo, que após dias finalmente se banhava com a água que caia timidamente de um chuveiro improvisado, assim como todo o resto. Malu teve a impressão de que alguém a vigiava. Talvez fosse só impressão, mas por via das dúvidas tratou de se apressar.

sexta-feira, agosto 12, 2005

Lá vem ela de novo...

Ela sumiu. Deixou de se comunicar. Precisava de um tempo para definir novos rumos. Daí que desde a última vez que ouvimos falar da moça, muita coisa aconteceu. Muita água rolou debaixo da ponte. E quem tem tiver fôlego que acompanhe...

O trem pára. Malu desce. Passara algumas horas vendo mato, mato e mais mato. Pensou "como é impressionante haver disputa por terra num país tão grande, com tanta terra vazia... Colocam uns bois e pronto! A terra é produtiva!"

Quando o trem parou, ela saltou. Não avistava viva alma. Só uns bois magros morro acima. Aliás, morro era o que não faltava. Não saberia descrever a vegetação, mas pensou que já não estava no Estado do Rio de Janeiro. Minas, talvez... Se ao menos encontrasse alguém que falasse “uai” ou “trem bão” - estereótipos - ela se certificaria. Se ao menos sentisse um cheirinho de pão de queijo, tutu à mineira... Humm! O estômago reclamava.

Ela caminhou até a estrada a alguns metros do trilho. Nada. Nem viva alma. Pensou que talvez fosse perigoso pegar carona com um estranho... E que outra alternativa, ora?! Para alguém que decide sair mundo afora pedalando não deveria haver tempo ruim. Acontece que ter perdido a bicicleta deixara nossa amiga viajante e desbravadora subitamente um tanto cautelosa. Não o suficiente.

Passou um caminhão e ela fez sinal. Antes da carona, veio a pergunta sem resposta: “Para onde a menina quer ir?” Qualquer lugar, ela diria. Muito vago... “Só até a próxima cidade ou o próximo posto.” Nem mais uma palavra pelos próximos quarenta minutos.

Malu dormia, quando sentiu uma mão em seu rosto. Mão áspera... Era o motorista. “Chegamos, menina”. Rapidamente, ela se ajeitou, pegou suas coisa e desceu do caminhão. “Fico por aqui mesmo, obrigada!” Descera em um lugar um tanto impróprio. Logo deu de cara com um estranho sujeito. Não tanto pelo chapéu preto ou pelos óculos escuros e grandes, pelas correntes douradas que pareciam pesar em seu pescoço ou pela calça sambando nos quadris. Não tanto pelo modo como fumava seu cigarro, levando-o à boca, tragando e soltando a fumaça, como se gozasse a cada baforada no vazio. Não era nada disso. Era o conjunto. O lugar, o contexto. O clima frio, a noite que ameaçava cair, um cachorro cheio de feridas purulentas que se esgueirava ao redor da lixeira disputando com um moleque qualquer resto de comida, a luz amarela e fraca, alguns poucos caminhoneiros que devoravam a bóia quase como animais...

Malu pôs a mochila nas costas e caminhou em passou lentos, como quem se sente espreitado. Foi até o balcão e pediu: “Leite quente e um misto, por favor”. Um pequeno banquete para seu estomago faminto.

Bom, desculpem se a opção pelos detalhes torna a narrativa lenta. Simplesmente, quero ser fiel aos fatos.
Uma pausa para o café. Também tenho fome. Já continuo...