sábado, setembro 30, 2006

O revisor 2

Termina o expediente. Ele recolhe suas coisas: pasta, guarda-chuva e casaco. Se espreguiça e ameaça:

- Ahh, eu vou me vingar daquela rede! Eu sai de manhã cedinho e ela, danada, ficou me olhando com ar de deboche, debaixo daquele jamelão...

sexta-feira, setembro 29, 2006

"Um beijo meu"

“Entendo sua preocupação com essa situação e por isso queria te dizer, em caixa alta:

NÃO SE PREOCUPE.

Eu não estou chateado com você, nem poderia. Entendo bem que tudo isso tenha te causado certa angústia e poderia apostar que parte dela vem do fato de que você gosta (um pouquinho) de mim.

Da minha parte, queria apenas que você não me tratasse como um estranho nos momentos em que nos encontramos. Quero sempre sentir que você pode estar próxima ainda que, nesse momento, não possamos estar do jeito que eu gostaria que estivéssemos e que, espero, seja também o seu desejo, ainda que contido.

A não ser que você queira me dizer coisas a esse respeito, e prefira que seja pessoalmente, não vejo porque sentarmos pra conversar como você sugeriu. Quero sim, conversar com você como conversamos naquela delicatessem, sobre nossas vidas. Foi, sem dúvida, uma conversa maravilhosa!

Um beijo meu”.


Porque as cartas perdem espaço para os e-mails?! Fosse tudo aquilo escrito à mão soaria ainda mais romântico e ainda mais gostoso de ser lido e relido. O anonimato do autor só não superava em beleza o costume dos amantes de deixarem suas iniciais. Mas a ausência de um nome ao final dava um toque especial, como se reforçasse a idéia de que aquelas palavras só poderiam ter uma única origem.

Mais uma vez: porque as cartas perdem espaço para os e-mails?! Fosse enviada pelo correio selada, carimbada e registrada, chegaria junto com as contas e outras correspondências. Causaria um espanto no primeiro segundo e logo se destacaria, não por algo à mais, mas pela ausência. Não, não seria nunca uma ausência que atormenta. Poderia vir sem o remetente, deixando completo o falso ar de suspense. Falso porque ela, e apenas ela, saberia quem era autor das palavras e do beijo final.

“Um beijo meu”...

A inversão do pronome possessivo, que sempre vem à frente, demarcando a posse (minha caneta, minha vida, meu amor, minha namorada...) encerrava o e-mail com um charme todo especial.

Se ele escrevesse apenas “Um beijo”, seria um beijo solto, que poderia se perder pelo caminho e nem chegar até o destino. Mas porque “Um”, apenas 1, ou “Um” beijo qualquer? Logo ela se deu conta de que a indefinição daquele artigo representava a incerteza do que o futuro reservava para os dois.

Poderia ser “Um” entre vários ou poderia ser “Um” à espera daquele que fosse “O beijo”. Como ele escrevera em caixa alta, ela tentou não se preocupar e, embora ainda lhe restasse algumas centenas de palavras para serem ditas, ela concordou que seria melhor não correr o risco de pecar pelo excesso. Calou-se. Calou-se, buscando não alimentar em si expectativas de novamente voltar a falar...
Mas antes se permitiu uma último pensamento, daqueles que quase saem em voz alta de tão espontâneos.

Lembrou-se que no rótulo destacado de um vinho chileno como lembrança de um encontro inusitado ele escrevera: "adorável estranha". Os dois assinaram e dataram aquele vestígio da história, que ela logo correu para buscar dentro da bolsa. Em seguida, releu: "queria apenas que você não me tratasse como um estranho nos momentos em que nos encontramos".

Com o rótulo em uma das mãos, ela percebeu que não deixaria de ser adorável, tampouco estranha.

Deixou aquilo tudo de lado e foi andar de bicicleta...

quarta-feira, setembro 27, 2006

Mais um trecho (fora) do cotidiano

Ela esperava que ele a acompanhasse. Ele esperava que ela pedisse sua companhia. Ela esperava que ele falasse. Ele desejou suprimir as palavras. Ela disse que ia para esquerda. Ele se manteve em seu caminho. Eles foram embora, cada qual com seus pensamentos, porém sozinhos.
Antes, trocaram dois beijos cínicos, que não seguiram seus destinos, mas permaneceram retraídos um em cada lado da face.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Frases (fora) do cotidiano

Viajar é se perder...:

"Repleta de uma malvada sensatez, perdeu-se de mim antes que eu me perdesse dela."


***
O anti-super-homem:


Ele chega do almoço, senta na cadeira, se inclina jogando o corpo para trás e coloca o fone nos ouvidos. Antes disso, tranqüiliza: “eu tiro o óculos e fico inofensivo”.

O revisor, que acumula mais de 20 anos entre provas e originais, sofre da síndrome do anti-super-homem, mas guarda algumas características em comum com o cidadão de Metrópolis.

Ambos sobrevoam um ambiente jornalístico, embora o inofensivo ocupe um espaço menor que a gigante redação do “Planeta Diário”. Seu planeta, ao contrário, é mensal e bem menos imediatista, possibilitando que, após o almoço, o revisor feche os olhos por alguns minutos e possa imergir na sonoridade que só seus ouvidos tem o prazer de desfrutar.

De um lado, um se prepara para salvar o mundo, se despe de óculos e gravata. De outro lado, adaptado e confortável com algumas facilidades do avanço tecnológico, a luta do revisor, não menos nobre, é contra as terríveis palavras sem acento, os malignos erros ortográficos, os perigosos vilões da má concordância e as impiedosas incoerências textuais.

As armas: capa e óculos. As fraquezas: criptonita e hipermetropia.

domingo, setembro 17, 2006

Bombas de sódio e potássio...

De leigo para leigos...

A bomba de sódio e potássio tem importante papel no equilíbrio hídrico celular. Diante da grande porcentagem de água existente em seu interior, a célula tem que dispor de sistemas que mantenham em equilíbrio essa quantidade, tendo, como princípio elementar de funcionamento, as relações das concentrações de íons e proteínas entre os meios extra e intracelular. As concentrações são mantidas graças às trocas iônicas e protéicas estabelecidas entre os meios internos e externos à célula, de tal modo que se mantenham as concentrações ideais de cada íon e proteína em cada meio. A bomba de sódio e potássio é uma das estruturas pertencentes ao sistema de regulagem hidroeletrolítica da célula, sendo responsável, como o próprio nome diz, pela manutenção das concentrações iônicas do sódio e do potássio. A bomba localiza-se na membrana plasmática (que envolve a célula) e depende de ATP (“energia”) para o transporte desses íons (Na+/ K+), principalmente do potássio, cujo trajeto vai contra um gradiente osmótico (o potássio é transferido do meio extracelular, onde é encontrado em pouca quantidade, para o interior da célula, que possui cerca de 30x mais potássio que o meio externo). Assim, sódio e potássio cumprem seus respectivos papéis contribuindo para o equilíbrio hídrico celular.

***
Ela precisou buscar o auxílio da internet para compreender melhor aquela analogia que, mesmo incompreensível, lhe pareceu bastante interessante...

Ela se fez de réu confesso:

- Desculpe, acho que falo demais.

Ele encontrou a deixa para sua metáfora:

- Sabe o que é bomba de sódio e potássio?

Ela soube. Um dia, quando se preparava para prestar vestibular... Mas já não lembrava.

Após uma rápida explicação, que não foi bastante, ele disse que os dois eram como o sódio e o potássio, cada um necessitando de algo diferente que o outro. Necessidades diferentes, mas complementares. Melhor que necessidades, eram habilidades.

E, habilmente, ele a ouvia com atenção e carinho. Tanto mais ela tivesse para falar mais ele se ofereceria para ouvir. Mas não era daqueles ouvintes passivos... Um sorriso ou um olhar eram complementares e dialogavam durante aquele longo (talvez interminável) monólogo.


Ela por sua vez cumpria seu papel. Falar, falar e falar. E falar mais um pouco. Alterada esta composição, feita qualquer interferência nas concentrações de audição e “falação” estaria comprometido o equilíbrio...

domingo, setembro 03, 2006

Diálogo...

Cenário: ponte Rio-Niterói
Sentido: Niterói
veículo: ônibus

- Eu me sinto como um carro que pode ir a 300 km/h e só anda a 80.
- Ué, isso não é ruim. A velocidade máxima da ponte é 80 km/h.
- Tá, se você se contenta com 13 km...

Diário de viagem (trechos)

(Algum dia de julho de 2006...)

É incrível como viajar sozinha me fez ainda mais comunicativa, mas também me ajudou a exercer meu lado pensativo. Cultivei uma introspecção absurda! Sou daquelas pessoas (malucas?!) que falam sozinhas. E vi esse sintoma ser triplicado. Além disso, confesso: me tornei mais voyeur do que jamais fui. Sim, porque já exercia uma certa prática, um certo voyeurismo...

Gosto de observar pessoas.

Às vezes, quando estou dirigindo, paro no sinal e não resisto a um olhar furtivo em direção ao carro vizinho. Aliás, malditos insulfilmes!

O mais interessante de se observar as pessoas é imaginar quem são, perceber como estão vivendo aquele dia, o que estão pensando, para onde dirigem... É relaxante se perder no mundo alheio. Uma distração até que um verde dê um sinal de esperança e eu possa seguir.

Como dizia, durante a viagem, estava sentada em um bar de Montmartre e ao lado da minha mesa um casal. Os gestos dela e dele me pareceram muito familiares. A mulher jogava o corpo para trás, se inclinando sobre a cadeira a cada vez que ria de algo dito pelo seu interlocutor. Não falo uma linha em francês, mas posso jurar que o rapaz era bastante engraçado. Ou o jeito como a jovem se jogava para trás sorrindo e arrumava o cabelo desarrumando-o apenas fazia parte do diálogo entre os corpos. Sabiam que os corpos falam?! Já ouvi algo assim e penso que procede...

Ali, naquela rua da Cidade Luz, uma cidade que transpira romantismo – ou pode ter sido uma impressão mais subjetiva, dado minha, digamos, inspiração – enquanto eu comia meu hambúrguer com batata frita (delícia!) visualizei naquela cena a reprodução de outras. Algumas que eu mesma protagonizei.

Vi a euforia dos dois diminuir aos poucos, como se alguém houvesse pedido à banda que mudasse o ritmo e ao iluminador que abaixasse a luz... Claro que no meio da rua, naquelas mesinhas ultra charmosas, não havia música nem iluminação especial. Mas era como se houvesse.

Ele pega na mão dela e nesse momento os dois já têm certeza de que estão em sintonia. É tudo uma questão de tempo... Ela ainda ri de algo que ele fala (em francês, logo não entendi nada!), mas agora sem jogar o corpo para trás. Apenas a cabeça, como se tentasse fingir que deseja escapar do cerco que ele cria em volta dela. No entanto, ele já percebeu que ela está dentro do cerco e não quer sair. Enfim, o resto a gente já sabe como funciona. Resolvi deixar os dois a sós, pois este é o momento em que o plano se fecha, restando apenas o casal em cena. Ficaria apertado demais para mim.

Espelho

Tio Luiz e vovó:


- Olha mãe, eu chego em casa tão cansado, tão cansado, que eu não olho para o espelho. O espelho que olha para mim...