sábado, outubro 28, 2006

"Outra vez" (Malu de bicicleta)

Ela saiu para pedalar. Encontrou um final de tarde com o sol se espreguiçando por toda cidade, se esparramando pelo mar. Pedalou acompanhada pela música e por alguns pensamentos.

No meio do caminho, viu mães passeando com seus bebês, o vovô com o cachorro na coleira, senhores batendo ponto no bar, conversa entre amigos e um tira gosto fritado na hora, casais abraçados, outros amassados.

Foi passando incansável, recortada do cenário, quase imperceptível.

Força nas pernas, normalmente tão pouco exigidas. Respira, admira, transpira. Curvas, curvas, curvas, curvas. Desce, venta, acelera, acelera, acelera...

O sol já vem beijar a terra e encosta nas pedras fazendo-as brilhar... A garça, branca e arrepiada, se equilibra sobre duas estacas fincadas no meio do mar.

O vento bate forte neste fim de outubro.

Ela parou. À sua frente, o sol já vem deitando...

Em uma das pedras, ela leu:

“Cristina,

Das lembranças que eu trago na vida
Você é a saudade que eu gosto de ter

Te amo

Alex”
.../... /...

Demorou para lembrar da melodia, mas ainda que sem ela as palavras pareceram familiares: lembrança, saudade, amo... Algumas partes da mensagem, incluindo a data, já haviam sido apagadas, tamanho o desgaste causado pelas ondas invejosas.

Ela ficou ali alguns minutos com o sol batendo em seu rosto. Leu e releu meia dúzia de vezes aquelas palavras até que a melodia acabou se intrometendo... Deu as costas para o cenário e voltou assobiando a canção. Alguém chamado “Alex”, mesmo sem saber, tinha conquistado uma companhia para sua lembrança e saudade.


Cenário: 16 horas, praça à beira mar em frente à Igreja, Rua Quintino Bocaiúva, São Francisco, Niterói. Na altura do pôr do sol, onde ele se esparrama sobre o mar e estica um tapete dourado.

quarta-feira, outubro 25, 2006

Coletânea

De você, beijo.
De você, bons conselhos e críticas.
De você, jazz e sertanejo.
Uma coletânea de noites regadas a vinho
De domingos chuvosos, de carinho.
De você, quero divagação e sensatez.
Muitas horas sobre os males do mundo
E sobre assuntos dos mais banais.
De você, sobriedade e embriaguez.
De você, uma coletânea de trocas.
Minha certeza, sua dúvida
Minha vontade, sua indecisão.
Minhas janelas e portas (abertas)
Meu diálogo, sua atenção
Minhas supresas, meus ideais.
Seus sorrisos reunidos em coletânea.
De você, quero possibilidades.
De você, quero Bethânia



E um pouco mais...

terça-feira, outubro 24, 2006

Diálogo...

Diálogo entre dois


Faz o seguinte: não vamos mais falar de mim!
Não vamos mais falar dos meus propósitos
Nem da minha espontaneidade.
O tema não mais será minha língua solta e inconseqüente.
Não vamos falar das minhas muitas viagens
Nem das poucas aterrissagens
Não vamos falar nada sobre mim,
Não vou ser tampouco coadjuvante.
Vamos sair dessa monotonia de um tema só.
Vamos adiante...
Não falemos dos meus afazeres sem importância
De minha carência, dissonância ou decepção.

Não quero - e o proíbo - de tratar da minha estática vida amorosa
Ou de minha libido nada sulfurosa.
Não toque nos meus fins de semana,
Não mexa nas minhas noites de insônia
E não teorize sobre minha sensatez duvidosa.

Faz o seguinte: vamos falar mais de você!
Da sua voz robotizada
Do seu cigarro fedorento
Das suas baforadas altivas
À frente do sorriso debochado
E do ar de intelectual.

Da sua roupa engomadinha, do sapato engraxado,
Do seu estilo ‘roupa de missa’.
Vamos falar da sua vida de nômade,
Da sua próxima parada,
Dos seus flagrantes fios brancos
Ou da sua namorada...
Vamos falar dos seus 20 e poucos anos
Dos seus erros e danos
Da sua família desmembrada.
Vamos falar dos seus planos, da sua carreira promissora,
Do seu dia-a-dia entre papel, pedra e tesoura.
Do seu ofício de guardar a janela alheia
Vamos falar do seu jeito vagaroso, sempre com os dois pés no freio...
Vamos - e isso é provocação da boa! - falar do seu um metro e meio.
E quando, por acaso, o assunto acabar,
A saliva secar ou a curiosidade se extinguir,
Vamos um para cada lado.
Ou sentados em um banco de praça,
Vendo qualquer cena cotidiana, banal e sem graça,
Vamos apenas sentir.





quarta-feira, outubro 18, 2006

Três!

Não é hoje que essa pedra vai sair daqui...

Não, não é hoje e nem amanhã. Eu sei. Pode demorar anos até que a erosão seja concluída e quando isso acontecer, talvez (eu disse: talvez), eu já tenha me esquecido porque ela foi parar cá em cima.

Acho pouco provável, mas é possível que um dia esta pedra tão familiar e tão parte de mim já não faça mais sentido sob meus ombros, pesando com força e entortando minha coluna, antes tão ereta.

Pode ser (eu disse: pode ser...) que um dia não faça mais sentido carregar este fardo, esta herança judaico-cristã, esse carma ou seja lá o nome que queiram lhe atribuir. Para mim pouco importa!

Pode ser que um dia (eu disse: um dia...) eu canse de curvar meu pescoço e outorgue minha liberdade. Então, vou perceber que nunca houve correntes, que nunca houve tranca, nunca houve sequer porta! Eram apenas janelas, todas abertas, todas exibidas com vasos de flores campestres e cortinas rendadas.

E direi: "Que tonta eu fui! São apenas janelas!"

Vou me debruçar sobre uma delas, sondar a paisagem e contar até 3:

- Um, dois...

quinta-feira, outubro 12, 2006

Toc, toc, toc, toc...Soluço!




Museu Rodin - Paris
"Há sempre algo de ausente que me atormenta" (Camille Claudel)






Quem pode obrigar uma idéia a ir para o papel, quando ela insiste em permanecer martelando na cabeça?!

Você explica para ela que o lugar dela é sobre o papel e nada! Ela é teimosa! E passa semana e chega semana e ela permanece irredutível. Você coloca o papel em branco na frente para ver se consegue seduzí-la. Ela faz pouco caso, vira a cara e segue seu cotidiano massacrante, desgastante, pesado. Você sacode a folha branca, como a mãe que tenta atrair a atenção do bebê para a chave enquanto retira a faca de seu alcance. Inútil!

Cansado, você a ignora, finge que ela não está ali, que não o encomoda, que não altera sua rotina, que não muda seu humor, que não é inconveniente...
E ela desaparece como soluço. Pausa: como parar um soluço?! este tema merece algumas palavras...

Você se sente aliviado, bem-humorado, tranqüilo, bem disposto, confortável, encaixado direitinho no mundo. Até que...
Soluço!
Receitas para acabar com soluço: (serviço de utilidade pública)

1. Beber água sem respirar
2. Papel na testa (contra indicado para pessoas que estiverem em público)
3. Susto (contra indicado para pessoas com pressão alta)
4. Beijo (não passa, mas é divertido!)
5. Beber água de cabeça para baixo (contra indicado para pessoas submetidas à gravidade)
6. Forçar o soluço (não ajuda a passar, mas você conseguirá chamar atenção...)
7. Prender a respiração.
8. Outros
9. Levantar os braços (ou esse é para quem engasga?!)
10. Se jogar - de cabeça - do último andar de qualquer edifício com mais de 5 andares (contra indicado para pessoas com amor à vida)

E quanto à idéia: conviva com ela aguardando para saber quem sobreviverá mais. Você ou ela?! Ou se joga sem pára-quedas sobre ela. Deixe-a acreditar que está ganhando, enquanto é desgastada aos poucos. Até que um dia você vai sentir falta de alguma coisa, vai abrir o armário, vai vasculhar de baixo da cama, vai verificar na caixa do correio e vai ficar um bom tempo com a sensação de que perdeu algo pelo caminho...

terça-feira, outubro 03, 2006

Série "Correspondências"

Abaixo, o primeiro post da Série Correspondências:
08. 02. 02
"Estou em casa, mais precisamente no quarto dos meus pais. Tenho um cartão telefônico na minha frente. Estou deitado. Na bela paisagem do cartão vejo nuvens, vejo árvores, vejo água, vejo casa. Vejo muita coisa. Só não vejo gente. Faltam pessoas para compor a paisagem, sinto que falta. É praticamente um Romeu e Julieta sem goiabada. Simplesmente falta algo essencial.
Converso com você. Gosto disso. Gosto de poder penetrar nos seus olhos e enxergar a sua mente. Embora você não saiba, seus olhos são claros, diria que até cristalinos. E isso me preocupa certas vezes. Isso me preocupa, pois consigo ver neles uma ambição de não enfrentar incertezas, incertezas que te incomodam. Na vida, o que a torna tão espetacular é o fato de um Deus estar jogando dados a todo instante. Somos regidos por incertezas e probabilidades, e isto é ótimo. (Sem essa incerteza, tenho medo de imaginar como seríamos). Nós somos microcosmos, e como tal, possuimos uma organização complexa. O que acontece conosco é o mesmo que acontece com os ecossistemas. Devemos interagir de forma construtiva com outros microcosmos, a fim de estabelecer um macrocosmo mais equilibrado. Ninguém é autosuficiente. Nós só estamos aqui pois sabemos nos relacionar de forma vantajosa com (muitos) organismos. Você já parou para imaginar quantas variáveis entram numa equação para que o resultado seja igual a "vida"? São inumeráveis, infinitas.
Digo isso para mostrar que nada nem ninguém é completo sem estar relacionado. Fico imaginando se mantendo o atual estado poderemos ajudar um ao outro. Não desejo ser apenas uma válvula de escape nem um passatempo. Isso não me torna melhor. Devemos pensar e modificar essa forma de tratamento. Todos estamos interligados. Seres vivos + "não vivos", tudo está ligado. Formamos uma teia e visamos o equilíbrio - a mãe Gaia agradece."