quinta-feira, maio 24, 2007

Série: Desconhecidos (A praça)

Juiz de Fora
Em algum dia no meio de uma tarde no meio de maio...


A mão repousando sobre a bengala. O alinhamento do terno, um sinal da elegância. As linhas do rosto se assemelhando às fronteiras de um mapa. Na pasta, papéis talvez... Um guarda-chuva, possivelmente. Os óculos não enganavam. Ele enxergava além. Aqueles olhos, míopes talvez, e certamente cansados miravam mais do que qualquer um pudesse supor. Não os subestimei. A mão esquerda descansando sobre o banco do Parque Halfeld. Naquele instante, parou o tempo. Nenhuma das árvores ousou balançar seus galhos. Apenas algumas folhas desobedientes se animaram com a brisa que passava sem alardear sua presença.
O cenário era todo dele. Dele e de sua imóvel concentração. Seu pensamento, não dividiu com ninguém. Os lábios cortados pela continuação das linhas que avançavam sobre seu rosto indicavam certo desânimo. Seria uma conta do passado, seria um ajuste com o futuro? Do presente, nada seria capaz de afligi-lo, porque o presente simplesmente não era, estava congelado. Mas eria esse estado gélido - longe das emoções passadas, afastado das potencialidades de um futuro - seria essa a causa do aparente desânimo? Estranha suposição... Pois quisera eu ter o privilégio de viver esse instante, em que as árvores param e tudo se cristaliza para que seu pensamento flua em paz, sem a pressão do elevador que vai sair do seu andar ou do ônibus que já deixa o ponto até o próximo ponto e o próximo ponto e o próximo... Ele não sabe, mas aquele momento foi congelado e nós dialogamos por alguns segundos. E, embora eu seja incapaz de traduzir o teor de nossa conversa, posso garantir que aprendi bastante com a elegância do terno e da gravata, as linhas fronteiriças do rosto, as grandes orelhas de bom ouvinte, o repouso das mãos, a prevenção do guarda-chuva na pasta e o exemplo de quem - mesmo com um certo ar de desânimo - não me enganou. Ele via além...


Nota: Desde já, peço licença aos desconhecidos para expor nossos encontros neste espaço virtual.
(Texto e foto: Maria Luiza Muniz)

domingo, maio 20, 2007

O Velho

Passava quase pela Rua da Lapa, ali próximo a Passeio Público que às vezes me parece tão deslocado em meio a uma paisagem de altos prédios e passos apressados. Quem afinal passeia por ali? Eu tampouco. Estava com pressa, como sempre. A pontualidade me dói no calcanhar. E mesmo advertida quanto ao péssimo cartão de visita que um atraso pode significar, é mais forte que eu – justifico. Correndo, atrasada para aquela reunião marcada e remarcada tantas vezes, olhei de relance alguém conhecido. Na verdade, era um nome, dois. Mesmo empurrada pelo ponteiro do relógio me permiti uma parada rápida, como se desejasse cumprimentar um conhecido. Era quase isso. O vi em meio a tantos outros, igualmente empoeirados, igualmente barateados. Mas por conhecê-lo, por ter ouvido a respeito das horas de sono mal dormidas, do stress, das revisões e re-revisões, da exaustiva – embora certamente prazerosa – pesquisa, enfim do sangue, suor e lágrimas derramados para que ele existisse... Lamentei profundamente ver aquele conhecido naquela condição. Desvalorizado, velho, gasto, vulnerável à ignorância de alguém que, ao adquiri-lo, não soubesse dar-lhe o verdadeiro valor. Peguei-o em minhas mãos. Rapidamente o devolvi ao mesmo lugar. Prossegui caminhando a passos largos e corridos, tentando superar-me a cada metro. Pensei como era injusto que o que acabava de ver. O Velho ali largado, como algo velho realmente. Quem seria capaz, que alma insensível buscaria se desfazer de tanta Graça? Quanto recebera para cometer tal crime?
Na volta, percorrendo o mesmo caminho, notei que ele dividia o espaço com Lima Barreto, José de Alencar, Isabel Allende e tantos outros nomes que, não fosse a minha nova percepção do quadro que via, mereceriam a mesma preocupação inicial. Com outros olhos, percebi que aqueles senhores dispostos haviam escapado do asilo que são as prateleiras empoeiradas e a prisão de bibliotecas fechadas e tão pouco acessíveis. Ali, não estavam vulneráveis como imaginei à primeira vista. Eram jovens senhores se exibindo, quem sabe, para jovens olhares, para olhares menos favorecidos. Talvez, imaginei, até instigasse olhares analfabetos ou iletrados a saírem da cegueira das letras e atravessarem para o mundo da leitura. Ali, eram todos militantes, lutando passivamente pela causa da democratização do conhecimento. Suas páginas amarelas já não serviam para o gosto de quem conseguira alguns trocados vendendo-os ao ambulante. Contudo, alguém se encantaria com a beleza da velhice que chegara para aqueles senhores, tal como para o Velho Graça, de Denis de Moraes.

sábado, maio 05, 2007

Respiração em fragmentos

Muitas patologias advêm da má respiração.
***

- Prende, prende, prende… Solta com um suspiro… De novo. Prende, prende, prende… Solta com um suspiro…

Essas são palavras da fisioterapeuta. Ela trata da reeducação postural, desatando nós semanalmente. E toda semana há novos. A região dos ombros é crônica.

- Não precisa me ajudar. Apenas respire.

Outras palavras da fisioterapeuta. Ela diz “Apenas” como se fosse fácil apenas respirar. Talvez seja, mas não parece. Aliás, é cada vez mais difícil esse processo mecânico, essa troca. Oxigênio, oxigênio, oxigênio... Gás carbônico, gás carbônico, gás carbônico.

***

- Mulheres que moram sozinhas ficam mal faladas.

Palavras da avó, que já beira os 90.

- É muito feio uma mulher sozinha, que recebe homens em casa. Fique na casa dos seus pais até conhecer seu noivo, casar e ir morar com ele.


A mecânica da indecência: mulher-independência-homens.


***

-Tenho que esconder as coisas – diz enquanto procura o dinheiro. – Nunca tive que esconder nada, mas agora elas andam sumindo...

A mecânica da memória já dá sinais de desgaste, embora não abra mão da produção em série pais-noivo-casamento. Mais um processo mecânico: viver.

“Apenas respire”. Complicado isso, não?! Afinal, trocas são sempre complexas...


Oxigênio, oxigênio, oxigênio... Gás carbônico, gás carbônico, gás carbônico.

***

Muitas patologias advêm da má respiração.

quarta-feira, maio 02, 2007

Palavras (quase) minhas...

Emergência (Mário Quintana)

"Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.



Quem faz um poema salva um afogado. "






Seguem mais algumas palavras que ainda duvido não serem minhas por me parecerem extremamente familiares. Seguem algumas palavras que catei no bosque alheio. (http://www.denisdemoraes.blogger.com.br/)

Meu nome é Caio F. Moro no segundo andar, mas nunca encontrei você na escada

Por Caio Fernando Abreu

Preciso de alguém, e é tão urgente o que digo. Perdoem excessivas, obscenas carências, pieguices, subjetivismos, mas preciso tanto e tanto. Perdoem a bandeira desfraldada, mas é assim que as coisas são-estão dentro-fora de mim: secas. Tão só nesta hora tardia - eu, patético detrito pós-moderno com resquícios de Werther e farrapos de versos de Jim Morrison, Abaporu heavy-metal -, só sei falar dessas ausências que ressecam as palmas das mãos de carícias não dadas. Preciso de alguém que tenha ouvidos para ouvir, porque são tantas histórias a contar. Que tenha boca para, porque são tantas histórias para ouvir, meu amor. E um grande silêncio desnecessário de palavras. Para ficar ao lado, cúmplice, dividindo o astral, o ritmo, a over, a libido, a percepção da terra, do ar, do fogo, da água, nesta saudável vontade insana de viver. Preciso de alguém que eu possa estender a mão devagar sobre a mesa para tocar a mão quente do outro lado e sentir uma resposta como - eu estou aqui, eu te toco também. Sou o bicho humano que habita a concha ao lado da concha que você habita, e da qual te salvo, meu amor, apenas porque te estendo a minha mão. No meio da fome, do comício, da crise, no meio do vírus, da noite e do deserto - preciso de alguém para dividir comigo esta sede. Para olhar seus olhos que não adivinho castanhos nem verdes nem azuis e dizer assim: que longa e áspera sede, meu amor. Que vontade, que vontade enorme de dizer outra vez meu amor, depois de tanto tempo e tanto medo. Que vontade escapista e burra de encontrar noutro olhar que não o meu próprio - tão cansado, tão causado - qualquer coisa vasta e abstrata quanto, digamos assim, um Caminho. Esse, simples mas proibido agora: o de tocar no outro. Querer um futuro só porque você estará lá, meu amor. O caminho de encontrar num outro humano o mais humilde de nós. Então direi da boca luminosa de ilusão: te amo tanto. E te beijarei fundo molhado, em puro engano de instantes enganosos transitórios - que importa?(Mas finjo de adulto, digo coisas falsamente sábias, faço caras sérias, responsáveis. Engano, mistifico. Disfarço esta sede de ti, meu amor que nunca veio - viria? virá? - e minto não, já não preciso.)Preciso sim, preciso tanto. Alguém que aceite tanto meus sonos demorados quanto minhas insônias insuportáveis. Tanto meu ciclo ascético Francisco de Assis quanto meu ciclo etílico bukovskiano. Que me desperte com um beijo, abra a janela para o sol ou a penumbra. Tanto faz, e sem dizer nada me diga o tempo inteiro alguma coisa como eu sou o outro ser conjunto ao teu, mas não sou tu, e quero adoçar tua vida. Preciso do teu beijo de mel na minha boca de areia seca, preciso da tua mão de seda no couro da minha mão crispada de solidão. Preciso dessa emoção que os antigos chamavam de amor, quando sexo não era morte e as pessoas não tinham medo disso que fazia a gente dissolver o próprio ego no ego do outro e misturar coxas e espíritos no fundo do outro-você, outro-espelho, outro-igual-sedento-de-não-solidão, bicho-carente, tigre e lótus. Preciso de você que eu tanto amo e nunca encontrei. Para continuar vivendo, preciso da parte de mim que não está em mim, mas guardada em você que eu não conheço.Tenho urgência de ti, meu amor. Para me salvar da lama movediça de mim mesmo. Para me tocar, para me tocar e no toque me salvar. Preciso ter certeza que inventar nosso encontro sempre foi pura intuição, não mera loucura. Ah, imenso amor desconhecido. Para não morrer de sede, preciso de você agora, antes destas palavras todas cairem no abismo dos jornais não lidos ou jogados sem piedade no lixo. Do sonho, do engano, da possível treva e também da luz, do jogo, do embuste: preciso de você para dizer eu te amo outra e outra vez. Como se fosse possível, como se fosse verdade, como se fosse ontem e amanhã.

(O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 29/07/87)