sexta-feira, abril 09, 2010

A triagem

"Blusa feminina!". "Aqui!". "Calça masculina!". "Desse lado..." "Sapato!" "Lá no fundo". Diálogos assim, apressados e mobilizados, se repetiram hoje pela manhã num dos principais centros de doação de mantimentos para os desabrigados de Niterói, o Clube Canto do Rio.

A triagem das roupas, que vem sendo feita nos últimos dias, conta com um batalhão de centenas de voluntários. Desde jovens universitários até senhoras aposentadas. Cada novo integrante que se apresenta recebe dos demais as primeiras orientações. Primeiro passo: luvas.

Mais que roupas, histórias são doadas. Cada uma delas encontra-se registrada na peça que chega para ser separada, categorizada e encaminhada para novos donos. E, mais adiante, novas histórias serão escritas...


Rapazes emprestam a força de seus braços para carregar de um lado ao outro sacos e mais sacos que vão sendo preenchidos.

- Um homem forte! - brinca uma moça ao solicitar que um dos garotos a ajude no transporte de mais um saco verde, devidamente preenchido e etiquetado.

A pilha de roupas se refaz em questão de minutos, deixando a sensação de que quanto mais seleciona-se, quanto mais separa-se de um lado, mais vão se acumulando novas doações do outro.


- Parece que não vai acabar - afirma uma senhora.

Outra moça de cabelos loiros e ralos entoa um Roberto Carlos com sotaque meio gringo enquanto retira daqui e separa ali.

- Roupas íntimas masculinas?!
- Tem que abrir um saco de roupas íntimas masculinas!

'Abrir um saco', na triagem, significa etiquetar um dos sacos verdes - onde as roupas são depositadas durante a triagem - identificando tipo e gênero. Escreve-se: "Roupas íntimas masculinas". Pronto!

Ursos de pelúcia, um livro de Biologia, bonecas, sutiãs, calcinhas, cuecas, meias, saias, vestidos, casacos, cortinas, pano de prato, travesseiro, talheres, botas, sapatos, sandálias... Em poucos casos, falta um dos pares; o que se fará nesses casos? Separa-se num canto. No final, é possível que sirva para alguém aquele par perdido.


Mas outros 'pares' ainda estão sumidos. A imprensa apresenta estimativas e contabiliza. Seriam mais de 200 sob toneladas de terra. O que se fará nesses casos? Escavar, torcer, esperar e rezar.


(Sábado, 10 de abril de 2010, 19h: 223 mortos em todo o Estado do RJ)

Alguém sugere que, com a avalanche de doações, já há roupas suficientes. Seria bom incentivar a doação de alimentos e de outros artigos mais necessários e urgentes.

Há pilhas de tudo. Pilhas de roupas, de colchões, de biscoitos, de farinha, leite, arroz, papel higiênico, sabonetes, pasta de dente, fraldas... Há pilhas bem organizadas, esperando para serem desmontadas à medida que as cestas básicas são preparadas.



O fato é que o muito será insuficiente para aqueles que perderam tudo, ou quase tudo. Isso não diminui em nada a importância da solidariedade - o lado bom das tragédias, ressaltam os repórteres.

Parece mesmo quesito jornalístico ressaltar o lado positivo de situações trágicas. Afinal, "é o brasileiro mostrando que sabe ser solidário...", enfatizam. Parece lamentável, contudo, que as pessoas precisem chegar à situação de quase indigência para terem direito à visibilidade. A solidariedade acaba sendo filha adotiva da desigualdade social.



Em 2007, parte da comunidade do Morro do Céu, vizinha do agora internacionalmente conhecido Morro do Bumba, gritava aos quatro ventos que não desejava a construção do 'aterro controlado'. Já haviam dividido espaço por mais de duas décadas como um verdadeiro "lixão" a céu aberto. A possibilidade de construção do aterro representava ampliação de um pesadelo bastante real, como problemas de pele, doenças respiratórias, a contaminação do lençol freático e da vegetação local. Todos esses problemas foram expostos durante audiência pública realizada à época na Câmara dos Vereadores. Não teve muito eco...


***

Técnicos da defesa civil, guardas municipais e outros funcionários da prefeitura dão logística à solidariedade. Comunicam-se através de rádios e celulares. Parecem monitorar os diversos lados da corrente. Sim, não deixa de ser corrente. Construída às pressas para dar conta do que, por sorte, avalanches e improbidade deixaram de pé.

É hora do almoço. Um dos voluntários descola 10 'quentinhas'. A sugestão é para que sejam consumidas pelos que moram mais longe. Os outros em algum momento deixarão o local para comerem algo, um sanduiche talvez. Outros sequer se deram conta de que o corpo pede sustentação e 'saco vazio não para em pé'.

***
'Gabriela' na triagem dos calçados

A mulher estava agachada. Seria Gabriela, cravo e canela, escalando o telhado de mais uma casa? Não... A senhora apoiava o peso sobre as pernas dobradas, sem encostar o joelho no chão. Seria a mulher aranha? Não...

Nas mãos, apenas sapatos. Estava cercada por centenas de pares, dos mais diferentes. Seu trabalho era o seguinte: selecioná-los, juntá-los e identificar segundo o gênero dos destinatários. A mulher dedicava-se compenetrada àquela atividade. Já havia passado pela triagem das roupas depositadas nos sacos verdes. Agora trocava algumas palavras com outras mulheres, também voluntárias, também dedicadas e compenetradas.

Prosseguiu alguns minutos até que seu anonimato fora interrompido pela repórter.

- Sonia, Sonia! Vamos gravar?

A pele mais branca, o rosto desprovido dos disfarces da maquiagem, um vestido simples e a bolsa preta transpassada no ombro. A repórter entrevista Sonia Braga, estrela internacional do cinema nacional e atual moradora da cidade de Niterói. A atriz convida o telespectador a também fazer sua doação, empresta sua imagem à nobre causa e em seguida volta ao seu trabalho. Há muitos pares para unir, identificar e ensacar.




Lamentavelmente, contudo, outros pares permanecerão desunidos. E este problema deve inspirar enredos mais criativos para a história da cidade, do Estado e do país. A começar pela participação de novos roteiristas...

Nenhum comentário: