sábado, abril 24, 2010
Wild(e)
sexta-feira, abril 09, 2010
A triagem
A triagem das roupas, que vem sendo feita nos últimos dias, conta com um batalhão de centenas de voluntários. Desde jovens universitários até senhoras aposentadas. Cada novo integrante que se apresenta recebe dos demais as primeiras orientações. Primeiro passo: luvas.
Mais que roupas, histórias são doadas. Cada uma delas encontra-se registrada na peça que chega para ser separada, categorizada e encaminhada para novos donos. E, mais adiante, novas histórias serão escritas...
- Um homem forte! - brinca uma moça ao solicitar que um dos garotos a ajude no transporte de mais um saco verde, devidamente preenchido e etiquetado.
A pilha de roupas se refaz em questão de minutos, deixando a sensação de que quanto mais seleciona-se, quanto mais separa-se de um lado, mais vão se acumulando novas doações do outro.
- Parece que não vai acabar - afirma uma senhora.
Outra moça de cabelos loiros e ralos entoa um Roberto Carlos com sotaque meio gringo enquanto retira daqui e separa ali.
- Roupas íntimas masculinas?!
- Tem que abrir um saco de roupas íntimas masculinas!
'Abrir um saco', na triagem, significa etiquetar um dos sacos verdes - onde as roupas são depositadas durante a triagem - identificando tipo e gênero. Escreve-se: "Roupas íntimas masculinas". Pronto!
Ursos de pelúcia, um livro de Biologia, bonecas, sutiãs, calcinhas, cuecas, meias, saias, vestidos, casacos, cortinas, pano de prato, travesseiro, talheres, botas, sapatos, sandálias... Em poucos casos, falta um dos pares; o que se fará nesses casos? Separa-se num canto. No final, é possível que sirva para alguém aquele par perdido.
Mas outros 'pares' ainda estão sumidos. A imprensa apresenta estimativas e contabiliza. Seriam mais de 200 sob toneladas de terra. O que se fará nesses casos? Escavar, torcer, esperar e rezar.
(Sábado, 10 de abril de 2010, 19h: 223 mortos em todo o Estado do RJ)
Alguém sugere que, com a avalanche de doações, já há roupas suficientes. Seria bom incentivar a doação de alimentos e de outros artigos mais necessários e urgentes.
Há pilhas de tudo. Pilhas de roupas, de colchões, de biscoitos, de farinha, leite, arroz, papel higiênico, sabonetes, pasta de dente, fraldas... Há pilhas bem organizadas, esperando para serem desmontadas à medida que as cestas básicas são preparadas.
O fato é que o muito será insuficiente para aqueles que perderam tudo, ou quase tudo. Isso não diminui em nada a importância da solidariedade - o lado bom das tragédias, ressaltam os repórteres.
Parece mesmo quesito jornalístico ressaltar o lado positivo de situações trágicas. Afinal, "é o brasileiro mostrando que sabe ser solidário...", enfatizam. Parece lamentável, contudo, que as pessoas precisem chegar à situação de quase indigência para terem direito à visibilidade. A solidariedade acaba sendo filha adotiva da desigualdade social.
Em 2007, parte da comunidade do Morro do Céu, vizinha do agora internacionalmente conhecido Morro do Bumba, gritava aos quatro ventos que não desejava a construção do 'aterro controlado'. Já haviam dividido espaço por mais de duas décadas como um verdadeiro "lixão" a céu aberto. A possibilidade de construção do aterro representava ampliação de um pesadelo bastante real, como problemas de pele, doenças respiratórias, a contaminação do lençol freático e da vegetação local. Todos esses problemas foram expostos durante audiência pública realizada à época na Câmara dos Vereadores. Não teve muito eco...
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Técnicos da defesa civil, guardas municipais e outros funcionários da prefeitura dão logística à solidariedade. Comunicam-se através de rádios e celulares. Parecem monitorar os diversos lados da corrente. Sim, não deixa de ser corrente. Construída às pressas para dar conta do que, por sorte, avalanches e improbidade deixaram de pé.
É hora do almoço. Um dos voluntários descola 10 'quentinhas'. A sugestão é para que sejam consumidas pelos que moram mais longe. Os outros em algum momento deixarão o local para comerem algo, um sanduiche talvez. Outros sequer se deram conta de que o corpo pede sustentação e 'saco vazio não para em pé'.
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'Gabriela' na triagem dos calçados
A mulher estava agachada. Seria Gabriela, cravo e canela, escalando o telhado de mais uma casa? Não... A senhora apoiava o peso sobre as pernas dobradas, sem encostar o joelho no chão. Seria a mulher aranha? Não...
Nas mãos, apenas sapatos. Estava cercada por centenas de pares, dos mais diferentes. Seu trabalho era o seguinte: selecioná-los, juntá-los e identificar segundo o gênero dos destinatários. A mulher dedicava-se compenetrada àquela atividade. Já havia passado pela triagem das roupas depositadas nos sacos verdes. Agora trocava algumas palavras com outras mulheres, também voluntárias, também dedicadas e compenetradas.
Prosseguiu alguns minutos até que seu anonimato fora interrompido pela repórter.
- Sonia, Sonia! Vamos gravar?
A pele mais branca, o rosto desprovido dos disfarces da maquiagem, um vestido simples e a bolsa preta transpassada no ombro. A repórter entrevista Sonia Braga, estrela internacional do cinema nacional e atual moradora da cidade de Niterói. A atriz convida o telespectador a também fazer sua doação, empresta sua imagem à nobre causa e em seguida volta ao seu trabalho. Há muitos pares para unir, identificar e ensacar.
Lamentavelmente, contudo, outros pares permanecerão desunidos. E este problema deve inspirar enredos mais criativos para a história da cidade, do Estado e do país. A começar pela participação de novos roteiristas...
quinta-feira, abril 08, 2010
Nota de esclarecimento dos moradores de favelas de Niterói
8 de abril de 2010
Nós, moradores de favelas de Niterói, fomos duramente atingidos por uma tragédia de grandes dimensões.
Essa tragédia, mais do que resultado das chuvas, foi causada pela omissão do poder público.
A prefeitura de Niterói investe em obras milionárias para enfeitar a cidade e não faz as obras de infra-estrutura que poderiam salvar vidas.
As comunidades de Niterói estão abandonadas à sua própria sorte. Enquanto isso, com a conivência do poder público, a especulação imobiliária depreda o meio ambiente, ocupa o solo urbano de modo desordenado e submete toda a população à sua ganância.Quando ainda escavamos a terra com nossas mãos para retirarmos os corpos das dezenas de mortos nos deslizamentos, ouvimos o prefeito Jorge Roberto Silveira, o secretário de obras Mocarzel, o governador Sérgio Cabral e o presidente Lula colocarem em nossas costas a culpa pela tragédia. Estamos indignados, revoltados e recusamos essa culpa. Nossa dor está sendo usada para legitimar os projetos de remoção e retirar o nosso direito à cidade.
Nós, favelados, somos parte da cidade e a construímos com nossas mãos e nosso suor. Não podemos ser culpados por sofrermos com décadas de abandono, por sermos vítimas da brutal desigualdade social brasileira e de um modelo urbano excludente.
Os que nos culpam, justamente no momento em que mais precisamos de apoio e solidariedade, jamais souberam o que é perder sua casa, seus pertences, sua vida e e sua história em situações como a que vivemos agora.
Nossa indignação é ainda maior que nossa tristeza e, em respeito à nossa dor, exigimos o retratamento imediato das autoridades públicas.
Ao invés de declarações que culpam a chuva ou os mortos, queremos o compromisso com políticas públicas, que nos respeitem como cidadãos e seres humanos.
Comitê de Mobilização e Solidariedade das Favelas de Niterói
Associação de Moradores do Morro do Estado
Associação de Moradores do Morro da ChácaraSINDSPREV/RJSEPE – Niterói
SINTUFFDCE-UFF
Mandato do vereador Renatinho (PSOL)
Mandato do deputado estadual
Marcelo Freixo (PSOL)
Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (APAFUNK)
Movimento Direito pra Quem
Coletivo do Curso de Formação de Agentes Culturais Populares
quarta-feira, abril 07, 2010
A árvore... (Morro do Estado, 2007)
Estive lá em 2007. Foi impressionante ver aquele amontoado de pessoas dividindo minúsculos espaços - uns ainda mais apertados e comedidos que outros. Entre as melhores coisas que vivi ao longo do breve contato com o jornalismo foi conhecer melhor as comunidades de Niterói, e atravessar 'fronteiras' (invisíveis) nunca ultrapassadas por mim - por receio e desconhecimento. O primeiro produzido pelo último.
Quando possível, me auto-escalava para 'pautas sociais'. Em algumas oportunidades, percorri cantos alheios à Niterói que conhecia até então. Distante da cobertura policial, a qual essas áreas estão quase sempre relacionadas, procurava novas abordagens. E uma delas me deixou particularmente satisfeita.
Num domingo de 2007, numa visita 'exploratória' pelo Morro do Estado, durante meu esvaziado plantão de fim de semana, fui levada a conhecer algumas famílias. Aquelas pessoas há tempos buscavam permissão e ajuda para remover uma enorme árvore que ameaçava desabar e atingir as casas semeadas ao seu redor.
A árvore era enorme, cheia de galhos e raízes que se misturavam com as casas ali assentadas. Após conversar com alguns moradores fui me dando conta de que tratavam-se de famílias migrantes, nordestinas, que viviam no pé da enorme árvore, e formavam elas próprias uma mesma árvore genealógica. Um era irmão do outro, que era primo daquele, que era sobrinho de alguém mais adiante, que era filho... E por aí seguia.
Hoje, ao receber o e-mail abaixo reproduzido, e tendo ouvido no rádio a contabilização dos cadáveres desse lado de cá da Baía, me lembrei daquela enorme família - de seus galhos e ramificações. Bateu uma curiosidade de saber como estão. Será que a velha árvore continua de pé? Será que os moradores ainda dividem espaço com aquelas enormes raízes e galhos? Teria a árvore sido retirada para evitar tragédias futuras como as que vejo noticiarem no rádio e na TV? Como estão aqueles quase conterrâneos (sou filha de nordestino e não consigo deixar de me sentir um pouco pertencente àquelas bandas mais próximas do Equador)? Incomodada, vou amaciar minha curiosidade... Mas como seria bom 'pescar' das ondas do rádio - ou de algum outro veículo - alguma informação. Qualquer uma... Ou melhor, uma das boas! Tento me convencer de que notícia ruim chega rápido. Agora pouco ligou um amigo contando sobre a morte de distantes conhecidos naquele mesmo morro.
Torço para que a árvore genealógica que conheci há três anos não tenha perdido um galho sequer. E que outras sejam poupadas.
ps2: Projeto de Lei iniciou o debate em 2007 sobre proibição de novas licenças de construção de prédios na cidade
http://bit.ly/bpuSJc
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Informe da APN - Agencia Petroleira de Noticias