domingo, março 22, 2009

“I have doubts!” (“Eu tenho dúvidas!”)

Embora tenha sido batizada e tenha feito a primeira eucaristia, seguindo os sacramentos da Igreja católica, não tenho muita familiaridade com o texto bíblico. Fiz algumas leituras na Catequese, ouvi repetidas vezes as repetidas passagens do Evangelho nas missas - quando meus domingos eram religiosamente marcados pela visita à igreja -, e estudei trechos do antigo testamento em uma disciplina na faculdade de História. Ainda assim, é pouca minha familiaridade com os capítulos e versículos do sagrado livro.

Apesar disso, ao buscar na caixinha da memória, logo aparecem referências (vagas) sobre passagens marcadas pela dúvida. Uma delas é aquela da tempestade. Afasto uma lembrança daqui, outra dali, e finalmente alcanço a mensagem que, segundo acredita-se, os discípulos quiseram fazer chegar às gerações seguintes. O trecho da tempestade em alto mar é justamente aquele em que Jesus caminha sobre as águas. Salvo engano, Pedro é o desafiado da vez. Ele se joga ao mar para ir ao encontro de Jesus, que se encontra sobre as águas, mas a tempestade o assusta e ele teme, duvida. Jesus o repreende: “Homem de pouca fé, porque duvidaste?”

Há outras passagens ainda, mas não creio que seja o caso de revirar mais esta minha caixinha em busca de outros exemplos. Este me basta.

A questão é que – concluo agora – a Bíblia é marcada por histórias em que a dúvida representa a “crise de fé”. Ah, claro! Como posso ter me esquecido de São Tomé? Eis o desconfiado discípulo que precisa tocar as chagas do Cristo ressuscitado para crer no fenômeno supostamente impossível.

***

Acabo de assistir ao filme Doubt (Dúvida), do diretor John Patrick Shanley, com Meryl Streep (Sister Aloysius Beauvier), Philip Seymour Hoffman (Father Brendan Flynn) e Amy Adams (Sister James). Mais do a história de uma freira que confronta um padre suspeito de ter aliciado um estudante negro, o filme é repleto de densos diálogos sobre religião, moral, autoridade e a dupla dúvida/certeza.

No início do filme, o Padre Flynn começa seu sermão com a seguinte pergunta: “O que você faz quando não tem certeza?” O padre desenvolve seu sermão falando sobre a solidão daquele que duvida e sobre as possibilidades inerentes à dúvida tanto quanto à certeza: “A dúvida pode ser um vínculo poderoso e sustentar tanto quanto a certeza”, diz o sacerdote. A conclusão do Padre Flynn é um consolo para os Pedros e Tomés: “Quando nós duvidamos, nós não estamos sozinhos”.

Ou estaríamos vivendo uma solidão coletiva? No rastro do paradigma racional e positivista, a certeza é extremamente valorizada. E seu oposto, ainda que não seja a confissão da ignorância propriamente, já coloca o Tomé da vez em condição errática. As “crises de fé” da contemporaneidade são extremamente penosas, vide por exemplo, os efeitos do vigiado Risco Brasil. Este mede o nível de confiabilidade que os investidores estrangeiros podem ter em relação à economia brasileira, no caso. O índice varia em sentido negativo para a economia nacional quanto mais as condições políticas e econômicas colocam em dúvida a segurança do país como destino para os capitais em fluxo.

Em Doubt, há um ótimo diálogo entre o Padre Flynn e a Irmã James, uma jovem aparentemente fraca, dada sua dita ingenuidade e temperamento sentimental. Tais características são ainda mais ressaltadas diante da autoritária Irmã Aloysius Beauvier, a personificação da certeza, racionalidade e segurança. Será mesmo?

No referido diálogo, Padre Flynn defende seu comportamento carinhoso e humano no trato com os alunos da escola dirigida pela implacável Irmã Aloysius Beauvier. Em especial com Donald Miller, o pobre garoto negro, único na instituição de ensino. Em sua própria defesa, o padre aconselha Irmã James: “Há pessoas que vão atrás da sua humanidade, Irmã, para dizer-lhe que a luz no seu coração é uma fraqueza. Não acredite nisso!” E ele completa: “É uma velha estratégia de pessoas cruéis para matar a bondade em nome da virtude. Não há nada de errado com o amor”.

O contexto completo da fala acima será captado por aqueles que assistirem ao filme. Detenho-me aqui ao trecho matar a bondade em nome da virtude. Pois é disso que trata a apologia à certeza, uma defesa da virtude em detrimento da bondade. Esta vista no sentido daquilo que pertence ao campo semântico da emoção e dos sentimentos – supostamente erráticos e incertos. É compreensível, portanto, que na busca por fazer aparecer a verdade, Irmã Aloysius Beauvier acabe pecando. E após pecar, se justifica: “Em busca do pecado, um passo distante de Deus”.

Lembro que no colégio, e mesmo já na Universidade, alguns professores usavam de um expediente muito constrangedor para confirmar se o aluno sabia mesmo a resposta à pergunta feita: “Você tem certeza?”. E então o silêncio da dúvida preenchia a sala de aula. Dirão os adversos que o constrangimento é apenas para aqueles que não sabem o conteúdo ensinado. De fato. O constrangimento é àqueles que não estão seguros, que duvidam. A virtude é saber. E saber com certeza!

O denso embate entre o Padre Flynn e a Irmã Aloysius Beauvier traz nas palavras do primeiro a peça que promove o encaixe entre a certeza e seu ‘oposto’, a dúvida.

“A certeza é uma emoção, não um fato”.

E , sim, eu tenho dúvidas. E quantas!

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