“Inquirido disse: Que no dia de hoje, por volta das 14 horas e 45 minutos, a declarante caminhava pela Praia de Botafogo, em sentido ao Botafogo Praia Shopping, pelo calçadão, quando em frente à rua Farani, um grupo de três indivíduos que aparentavam ter entre doze e quinze anos, que com a mão sob a camisa, aparentando estar armado, um dos jovens disse: “Passa o celular e o dinheiro!”, sendo atendido; Que após o roubo, o grupo seguiu caminhando pelo calçadão em sentido ao Aterro do Flamengo, quando a declarante ouviu alguém gritar e olhou para trás...”
A declarante sou eu. Quisera não fosse. Quisera não tivesse nada a declarar. Mas tinha. Tinha muito mais do que me permitia o espaço reservado para meu depoimento, enquanto vítima e testemunha. Testemunha da insensibilidade humana, testemunha do desespero, da banalização, bem como da indignação e do medo quando transformados em individualismo e perversidade. A contragosto testemunhei tudo isso no dia mais triste de toda minha vida. Uma vida de poucos dias tristes, o que não minimiza o sofrimento do qual fui uma mera testemunha ocular.
Pudesse acrescentar alguns detalhes ao meu depoimento, assim o faria...
Que no dia de hoje, por volta das 14 horas e 45 minutos, a declarante, eu, caminhava pela Praia de Botafogo, trajando seu vestido novo, que fez questão de estrear no dia em que suas horas mal dormidas e todo seu esforço seriam recompensados e reconhecidos: “A Banca Examinadora, após argüição, decidiu pela aprovação com grau 100”. Possivelmente, sem perceber, a declarante, eu, trajava um sorriso de vitória ao ser abordada por três indivíduos enquanto caminhava pela Praia de Botafogo em sentido ao Botafogo Praia Shopping; (...) Que após o roubo, o grupo seguiu caminhando pelo calçadão em sentido ao Aterro do Flamengo, quando a declarante ouviu alguém gritar, olhou para trás e viu algo voar no céu, dar piruetas no ar a cair imóvel no asfalto que queimava sob o sol de 40 graus.
“Que deseja esclarecer que o taxista, autor do atropelamento não pôde evitar o acidente por se tratar de uma pista de alta velocidade e ter desviado dos outros dois indivíduos momentos antes, vindo a colher a vítima; Que com o indivíduo atropelado foi arrecadado o telefone e o porta-níquel com o dinheiro da declarante, sendo a vítima do atropelamento reconhecida ainda no local como um dos autores do roubo que fora vítima no dia de hoje...”
Eu, que prestei depoimento, que fui abordada, roubada e algumas horas depois obtive na 10ª DP meus pertences de volta; dos quatro, eu já não era tão vítima. Não conseguia me sentir vítima, tampouco lesada, vendo o sofrimento daquele garoto agonizando diante dos policiais e taxistas.
Trânsito lento, curiosos passam, espiam. Mais um acidente, como tantos que ocorrem pela cidade, pelo país. Fez por merecer. Ora, procurou!Tem mais é que morrer! Pior é que vai sobreviver e, réu, vai fazer outras vítimas. Garotos como ele, assaltam, roubam e até matam! Sem dó nem piedade. E aos 18 anos, voltam a ter a ficha limpa. Esse mundo é muito injusto... Infelizmente os outros dois escaparam. Antes tivessem sido lambidos pelo táxi, rodados no ar e caído agonizantes no chão. Esses garotos têm sete vidas e ainda gastam nossos impostos ao serem atendidos em hospitais públicos. O coitado fritou no asfalto! E que prejuízo esse garoto não deu ao se jogar na frente do táxi que passava, no mínimo, a 70 km/h. Uns R$ 500, calcula o taxista, candidatando-se ao posto de quinta vítima. Por enquanto, somos quatro, os três garotos e eu, testemunha e declarante.
Olhando o corpo no chão, imóvel enquanto não chegava o carro dos bombeiros, pensei na história dele. Um pé do chinelo jogado longe, talvez número 36, talvez aquariano como eu, talvez João, talvez Wellington, talvez irmão de mais 10, talvez filho único, talvez, talvez... Mas o que importa? Afinal, naquele instante era um corpo, era o corpo de um pivete que após se exibir dando piruetas no ar, permanecia segurando firme meu porta-nível e meu celular, devidamente resgatados depois que eu, caprichosamente, assinei três vias de um documento lá na 10ª.
O corpo. Sei que isso é desagradável, mas ainda tenho algo a declarar. Não sai da minha cabeça aquele corpo de bruços, aquela respiração ou qualquer coisa parecida que fazia as costas levantarem e descerem, levantarem e descerem num ritmo bem marcado, acelerado, como um animal abatido que resiste só por resistir, sem qualquer pretensão, apenas insiste em sobreviver.
Hoje eu fui testemunha ocular do visível e do invisível. Testemunhei horrorizada que a vida vale muito pouco nesses dias. Testemunhei que existe a pena de morte no meu país, debutante nas questões democráticas. Testemunhei que a sentença é dada sumariamente aos delinqüentes juvenis sem passado, sem história, sem desculpa, sem conserto, sem identidade. Apenas “pivete”. Ou o carinhoso e irônico diminutivo: “pivetinho”.
A declarante, eu, fui testemunha e vítima. Uma vítima que não se reconhece como tal. Uma vítima boba, complacente com os infratores, ladrões, delinqüentes... Indivíduos que lesam a sociedade de bem, que paga seus impostos e se ressente pela falta de segurança que assola este país.
Hoje, a historiadora aprendeu, na prática, as regras do jogo. Aprendeu como vivem indivíduos clandestinos, sem passado, sem história, sem justificativas. E por isso, previamente culpados.
Um comentário:
uma pena ter vivenciado algo tão chocante. depois de ler seu texto, fiquei feliz pelo que me fez pensar, por perceber, principalmente, que vítima hoje em dia está bem difícil de determinar.
parabéns pelo texto!
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